quarta-feira, 26 de junho de 2024

Tenho uma frase de Guimarães Rosa na minha parede. Olho para ela todos os dias. 

Nela, ele diz: “Mas eu tirei de dentro do meu temor as espantosas palavras”.

Que força tem o que a gente teme!

Se a gente deixar, o que a gente teme se torna justamente aquilo que controla as nossas ações. Nos guia. Nos faz fazer curvas, abaixar, retornar e sequer ir.

Mas não estou demonizando o temor.

Medo é sempre um alerta: um aviso, o anúncio de algo que é capaz de nos comunicar algo sobre nós ou sobre o outro.

O problema da comunicação é que ela é, também, criadora de ruídos.

Nem tudo o que se comunica chega no outro como se gostaria que chegasse.

E isso vale também na comunicação feita de nós para nós mesmas.

Então é preciso cautela com a cautela.

É preciso limpar a comunicação que o temor te traz.

A pergunta inicial seria: O que o seu medo está tentando te dizer?

Para essa resposta cabe uma vida inteira.

A gente leva muito tempo para aprender a se escutar e outro tempo maior ainda para aprender a se entender.

Idioma próprio é coisa paulatinamente aprendida.

Por isso, é preciso escutar essa frase do Guimarães Rosa.

É preciso tirar de dentro do teu temos tuas espantosas palavras.

Essa é a metáfora do se escutar.

Do aprender a fazer sentido daquilo que te faz sentido.

Do se esforçar para limpar e esfregar teus medos até que você consiga vê-los por dentro: compreender o que eles significam e o que eles estão tentando te dizer.

Que teus medos sejam como placas de trânsito: que te avisam que é bom parar antes de seguir, mas que você deve seguir seu caminho depois de observar que dá para ir. Mesmo com medo.

Não se engane: todos nós tememos.

Claro que algumas pessoas já aprenderam a dominar mais seus medos. Já os escutam com a cautela de quem escuta com calma um conselho, mas sabe que aquele amigo, embora esteja bem intencionado, não tem como compreender completamente a sua necessidade de ir para alguma direção. Por isso eles vão, mesmo temerosos.

Acho que é disso que Guimarães Rosa fala: que a gente vá!

Que a gente tire de dentro do temor a nossa necessidade de ir.

Que não sejamos nós mesmos a nos pararmos de seguir adiante e buscar novos caminhos.

Vamos?


___Lana Nóbrega__________________________

domingo, 17 de setembro de 2023

Sobre acreditar.

 Se você chegou aqui talvez seja porque você recebeu a minha carta por email.

Acreditar é isso que nos liga ao futuro, né?

Dá liga de vida à gente.

Olha: este é o texto do Rubem Alves que te falei por lá.

Ver é sempre um exercício.

A gente enxerga muita coisa.

Mas ver, verdadeiramente olhar algo, é um estado de atenção.

Que você consiga ver, no seu caminhar, aquilo que te comprometa a ponto de te iluminar por dentro.

Quando a gente acredita, a gente vê melhor.

terça-feira, 4 de outubro de 2022

Choro

 Há vezes em que um choro guardado nos inunda.


Não é um choro com um nome só: é um acúmulo de choros, de dores somadas.

É a existência perene de uma impotência da vida: há coisas que não temos o poder de resolver.


Há ações que não são nossas.

Há decisões que não nos pertencem.

Há desamores que não podemos transformar em amor.


A existência desse coletivo de dores, no entanto, é nossa.


É um ponto frágil em nós: no qual guardamos os resquícios daquilo que ainda está sendo curado, daquilo que ainda precisa de tempo, daquilo que ainda necessita da umidade das lágrimas.


Dor também precisa ser regada.

Visitada, trabalhada, mexida, reorganizada.


Quando a gente esquece da dor é sinal que a cura está acontecendo: que aquilo não está mais na superfície.


Mas nada impede que um dia - porque toda dor é também saudade da não-dor - essa dor emerja, sem avisar, e te faça lembrar daquilo que dói.


Isso não é fraqueza: é você entendendo os limites da vida.

É você percebendo que certos pontos finais são, na verdade, reticências.


segunda-feira, 26 de setembro de 2022

A esposa que decidiu ir embora

 Durante os muitos anos do Blog Sapatilhando, ainda sob o pseudônimo de Helena Paix, eu recebia muitos e-mails que me relatavam histórias, dores e alegrias. E outros tantos que me pediam conselhos.

Esta foi a resposta que escrevi para um desses emails.

Uma leitora do blog havia sido abandonada pela esposa, pois ela ainda tinha muita dificuldade de aceitar-se como lésbica e de enfrentar os preconceitos da família que não a aceitava.

Deixo abaixo o texto-resposta que escrevi, para que chegue em quem também necessita dele.

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Ela foi embora, o que eu faço?

Querida, sinto muito em saber disso.


Sinto mais ainda por, depois de tantos anos, sua esposa ainda colocar em dúvida quem ela é, por se deixar levar por discurssos fundamentalistas.


Sinto muito mesmo.


Mas te peço calma e te peço força.


Não somos, não existimos por causa de nossas companheiras, querida.


Elas podem ser nosso alicerce, nossa força em um momento delicado, nosso amor durante anos... mas se um dia os caminhos se separarem, o movimento natural, depois do luto vivido, da dor sentida, das lágrimas derramadas, é reencontrar-se consigo mesma.


Não cabe à mim ou à você convencer sua esposa de continuar o casamento, querida.


Essa deve ser uma escolha dela. Por mais que isso lhe machuque.


Como sua amiga, como alguém que lhe tem carinho, apenas lhe peço: tenha calma, seja forte!


A vida às vezes nos tira muito, mas em toda essa perda também nos fortalecemos. Também entramos por novos caminhos que serão capazes de também nos trazer novos sorrisos.


Imagino a sua dor. De verdade.

Sei que parece que o chão é arrancado de nossos pés. Que tudo o que acreditávamos se torna poeira. Todas as nossas certezas se vão.


Mas, ao mesmo tempo, é preciso que você se volte para si mesma. Para o valor que você tem. 


Podemos ir conversando, mas preciso que você seja forte. Preciso que você acredite que a vida não tira algo tão grande de nós sem que no futuro nos dê outras oportunidades, outras vitórias, outros sorrisos.


Acredite.


Todo amor só deve durar o tempo em que ambas(os) ainda estiverem promovendo mudanças uma no outro. O amor dura o tempo necessário para isso.


Se ela se fechou para essas transformações do amor, então, querida, é necessário que você enfrente isso com dignidade. Com auto-respeito. 


É necessário que você levante a cabeça e seja por você.


Se ela perceber que ainda lhe ama, que ainda pode ser transformada pelo amor, ela voltará.


Mas essa é uma reflexão que ela deve fazer por si mesma.


Chore suas lágrimas. Viva a sua dor. Sinta o seu luto.


Mas faça tudo isso com a certeza de quem não deve mendigar o amor e com a esperança de quem confia nos caminhos da vida.


No meio do desespero a gente esquece que ainda existem muitas horas no relógio.


Então, te peço que seja forte e que confie no tempo.


No mais, estou por aqui.

E tenho fé que dias melhores virão, viu?

Dias melhores virão. 

Você e suas pessoas

Nossas relações tanto podem ser o nosso céu, como podem ser o nosso inferno. 

Podem ser motivo de paz, como de caos. 

O mais importante de tudo, no entanto, são as organizações internas que a gente faz para chegar em um auto amor e auto respeito. Sobre isso, escrevi este texto. 

Deixo-o AQUI para que ele possa chegar a quem quer que precise dele.  

Digestão - Você e sua dor

O ano era 2013 e a minha própria homossexualidade ainda era motivo de dor. 

Pensei então em como cada uma de nós poderia trabalhar as dores que carregamos

Sobre isso, escrevi este texto. Deixo AQUI o link para quem quiser lê-lo.

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Assina a vida

Olha no meu olho, meu bem. Que te digo baixinho o teu valor pra mim. Vem cá pertinho, bem de mansinho, para que você escute o valor que você tem. É que igual à você não tem ninguém. Então fecha os teus olhos, e respira devagarzinho, sentindo o ar que sai do teu peito para o mundo. É a tua voz, meu amor, a única voz assim. É o teu olhar, bonita, o único que enxerga as coisas do teu próprio ângulo. E quando você interpreta o mundo, meu amor, a tua interpretação é única. E por isso mesmo a tua voz é gostosa de escutar. 


Então vem cá, que ouvidos para belo te querem, que olhos para o lúcido te desejam, que mãos para compartilhar te precisam. Vamos juntas, meu amor, que o mundo é grande e precisa da teimosia dos que acreditam na força que cada voz carrega em si e na beleza que cada unicidade traz. 


Não olhe a superfície, amor. Vamos juntas mergulhar na essência e no significado das coisas. Vamos juntas aprender a cartilha da vida, o beabá das belezas escondidas, o alfabeto das vozes não pronunciadas. 


É ali, bonita, nos cantos escuros de cada alma, que estão guardadas as jóias mais raras das impressões digitais. Me dá a mão! Para que mergulhemos juntas nas belezas silenciadas. Para que vasculhemos juntas as essências escondidas. Para que interpretemos juntas os processos que nos levam ao íntimo de cada ser. 


Vem, meu amor, porque há um propósito em tudo. E eu não quero jamais que você acredite naqueles que não sabem ver o belo. 


Pode ter medo, amor. Mas que você não deixe nunca que o medo congele teus pés, que a insegurança te trave o peito, que a dúvida te impeça de respirar. 


Olha nos teus próprios olhos, meu bem, e acredita no que eles veem. Pronuncia teu próprio nome. Respira teu próprio ar. Não há, amor, outra igual à ti. 


Assina a vida com a tua existência. 

Isso basta para que teus caminhos se façam.

Você dormindo

Você está aqui dormindo ao meu lado. Há pouco, eu também dormia. Meu corpo colado ao teu. Nossas respirações em sincronia. Mas acordei de repente e fiquei te olhando. Teu peito nu subindo e descendo. Teus cabelos caídos para o lado e teu pescoço longo. 
Enquando você dorme, eu olho em privilégio você aqui ao meu lado. Tua pele morena, teus longos cabelos negros, teus lábios carnudos, tua cintura fina e quadril largo. Repasso em minha mente tudo o que vivemos momentos antes de adormecermos. Sorrio sozinha. Lembro do que conversamos: de estarmos nuas de alma. De estarmos entregues. De nos amarmos em uma sincronia pontual e cúmplice. 

Tuas palavras ressoam em minha mente: eu e você que não nos precisamos, mas que nos queremos. Eu e você que sorrimos juntas sorrisos iguais porque assim nos faz sentido. Lembro de nós duas lendo juntas o trecho daquele livro, tomando vinho e discutindo os possíveis significados daquelas palavras. Lembro da gente fazendo amor com nossas percepções muito antes de virmos para a cama. 

Olho para o relógio ao lado da cama e percepbo que o dia logo, logo amanhecerá. Você vai abrir os olhos devagar, me dar um beijinho no olho como de costume, se espreguiçar com vontade esticando os braços e as pernas enquanto faz um gemidinho de preguiça: "porque não se começa o dia sem se acordar o corpo e o coração", você diz sempre como se eu já não conhecesse esta sua frase. 

Te olho mais uma vez adormecida e uma paz ressoa em nosso quarto. Repouso minha cabeça em teu ombro e coloco meu braço em volta de ti. Você se mexe um pouco e se aproxima mais de mim. Abraçadas estamos. E o restinho do sono me vem junto com o sorriso de te ter em mim.

Vem

vem, que já estou com saudades de ti! nem faz muito tempo, eu sei, mas o tempo sem ti se demora demais, ô meu deus! moça, você bagunçou meu relógio, minha cama e minha solidão! deixou em mim seu cheiro, seu gosto, seu toque, seu sorriso. e, olha, já te preciso! que coisa mais sem sentido é isso de se querer: eu nem te tinha, agora já não sei mais não te ter. vem?

Vem cá, meu bem

Vem cá, meu bem. Que eu te quero inteira. Lembra daquele dia no parque? Éramos amigas, então. Você falando divertida, rindo sorrisos tão amplos, contando despreocupada as suas histórias. Estou certa de que foi ali que eu comecei a me apaixonar por ti. Eu já nem sei direito em que ponto do caminho você tomou tanto espaço. Quando vi, você já estava em tudo. Acho que é assim mesmo que o amor funciona, não é? De repente, a gente se vê tomada por ele. O amor não pergunta nada, não quer saber, não dá ressalvas: apenas chega e se espalha todo em nós. Pois bem, meu bem. Eu cá estou lhe dizendo que venha, venha. Está tarde, eu sei, mas venha que eu lhe quero. Não apenas lhe quero: lhe preciso. Inteira e nua. Sorrindo esses teus sorrisos leves que às vezes soam como sorrisos que ainda não foram contaminados pela dor do mundo. Passarei minhas mãos de leve no teu rosto, olhando fundo nos teus olhos, sorrindo junto contigo. Palavras não serão necessárias, meu amor. Tenho olhos que sabem falar. E estou certa de que os teus olhos saberão ouvir os meus. Beijarei o teu rosto inteiro: a tua testa, as tuas pálpebras, a pontinha do teu nariz, a tua bochecha, o cantinho do teu lábio. Depois, me demorarei na tua boca, que ali quero morar. E te pronunciarei inteira em mim. A dialogar meu corpo com o teu. Venha. Que já é hora de você vir.


Te vi

Te vi na rua hoje. Você não me viu. Não me veria. Nem sabe sobre mim. Sobre o que sinto quando qualquer coisa relacionada a ti aparece.


Você não sabe como me palpita o coração. Não sabe a revolução que a tua existência causa na minha. Não sabe as vezes em que fui dormir e acordei com você pulsando em mim.


É engraçado como alguém pode revolucionar outra pessoa desta maneira. Você não fez nada demais. Além de existir e ser linda, claro.


A tua presença no mundo faz os meus dias mais felizes. E não sei, meu amor, se um dia de fato nos falaremos. Não sei se poderei te dizer olhando nos teus olhos a dimensão da tua existência em mim. 


Não sei se terei a chance de te fazer compreender como quando você fala, todas as outras vozes do mundo deixam de existir. Se poderei te falar que quando você sorri, parece que todo o brilho do sol está em ti apenas e você é o dia e as horas e o tempo.


Não vivo a minha vida centrada em ti, não pense isso. Mas é que você é, assim, esse referencial de beleza e encantamento para mim. Já nem sei quais adjetivos te atribuir porque me parece que todos os elogios que existem se encaixam à ti. 


Mas hoje você cruzou a rua e eu fiquei te olhando ir. Você caminhava ocupada, indo resolver algo. E eu te olhei até você dobrar a esquina e fiquei feliz.


Porque você não saber da minha existência e ser ainda assim tão linda só me faz te amar mais: porque você não é linda por mim ou para mim. Você é de si mesma. 


Mas, aqui do outro lado, tem um coração que pulsa teu nome às vezes. Que sonha contigo. Que sente boas coisas porque você existe.


Gratidão, meu amor, por reverberar sorrisos internos em mim sempre. Sou mais bonita por te ter em mim.

Te liguei

Te liguei uma, duas, três vezes. Mentalmente, claro. Imaginei todo o diálogo contigo. Tinha já ensaiadas as minhas falas e as tuas. A nossa conversa iniciaria insegura, como todo amor novo é. Mas teria o encantamento daquilo que se descobre. Falaríamos de política, xingaríamos a inércia do povo, discutiríamos literatura, descobriríamos amores em comum, tentaríamos advinhar as músicas preferidas uma da outra e confessaríamos aqueles gostos musicais mais duvidosos que todo mundo tem. Riríamos falando sobre as séries que já vimos, e encontraríamos o fato incomum de que ambas amam filmes antigos e lentos. E leríamos em voz alta o poema preferido de cada uma. Quando chegasse a hora de desligar o telefone, perceberíamos, assustadas, como o tempo contou as horas apressado demais. Tentaríamos nos despedir algumas vezes, sem sucesso, porque a vontade de continuar conversando seria maior do que a necessidade de desligar. E quando finalmente a hora nos cobrasse uma despedida, desligaríamos o telefone com a vontade uma da outra na boca e no peito. 

Te liguei uma, duas, três vezes. Mentalmente, claro.  

Ser livre

É que ela me deixa louca com seu sorriso explosão. Com como ela mexe em tudo o que está quieto e como a sua sapequice agita o ambiente mais calmo. Eu viveria cem anos e ainda não daria conta de tudo nela. É liberdade o nome disso. É isso: é liberdade. Ela passa livre e eu tenho raiva de qualquer coisa que a prenda. Quero ela voando alto como o sentir dela que não cessa nunca. Eu não sei que nome tem isso. É amor, mas é mais que amor. É algo que as palavras não compreendem porque palavra é coisa limitada. Palavra é sempre a tentativa de nomear algo. Mas há tanto que não é nomeável. No fim, palavras são só tentativas pequenas e falhas demais para aquilo a que se propõem. E com ela não adianta porque ela é inominável. Eu acho o mundo louco. Vivo há 36 anos neste mundo e acho o mundo tão, tão bobo. Já fui gorda, já fui magra. Já fui loira, ruiva, azul e laranja. Hoje nem sei o que sou. Já dei pra homem, já dei pra mulher, já dei para os seres bonitos que nem se preocupam com isso. Mas ela: ela me escapa. E porque ela me escapa ela me encanta. Há sempre o que se ver nela. Há sempre o que encontrar nas inconstâncias dela. E o mais encantador é que nem ela dá conta de si. Ela sofre com a sua própria liberdade. Porque há fome demais nela e um estômago profundo sempre quer mais comida. E o mundo é um refeitório amplo, mas toda alimentação tem seu preço. E eu sou apenas grata: porque posso olhar de perto a fome dela. Essa fome tão grande de vida e de gozo. E gosto de vê-la ajeitar as asas que ela carrega embaixo dos braços, disfarçando para caber entre os formais. Só eu vejo suas asas tentando escapar e ela disfarçadamente as ajeitando. Rio por dentro do seu desconcerto. Mas choro também: porque o mundo é especialista em prender as asas dos seres alados. E eu a quero livre. Mergulhando em cada voo que sua fome anunciar. Mas também a quero salva: de si e do mundo. E por isso estou por perto. Porque sei ser ninho para os seus pousos.

Selvagens

você está aqui ao meu lado, espalhada toda em mim. teu cabelo se derrama no meu ombro e se mistura ao meu. nossos cabelos pretos e longos misturados, embaraçados em uma confusão íntima e nossa. a gente troca goles de vinho em uma mesma taça, numa economia tão rica que nos transborda. paira um sonho latente em nós: que esse momento dure. se esparrame como nossos cabelos, se misture ao tempo como misturadas estamos. já não temos paciência para dúvidas. mas não temos pressa também. há no nosso tempo algo tão dolorosamente aprendido que já não queremos promessas. queremos o hoje parido em nós. o orgasmo feliz de quem se entrega. a liberdade dos que não enunciam poréns ou titubeiam escolhas. não precisamos convencer ninguém, nem a nós mesmas. não tememos o mundo e nos parimos todos os dias em coragem e amor. já não há correntes e, sem elas, o mundo é deliciosamente selvagem. como nós duas.

A gente segue caminhando

 A gente segue caminhando, amor, e é tão difícil encontrar o delicado. É tão difícil que nos tratemos todos como deveríamos. Que saibamos ver as nuances da fragilidade de cada um de nós. É tão difícil tirar a própria dor do peito. E mais difícil ainda é enxergar o que dói no peito que não é nosso. 


Vem cá, amor, que a gente tem que aprender o idioma da aproximação. E temos que conhecer nossos próprios cataclismas.


Eu não sei nada do futuro, meu bem. Mas as horas passam tão rápido! E o futuro chega sem que dê tempo da gente se preparar. 


O que eu quero? Eu quero a paz das coisas ditas. Eu quero o silêncio sereno que já desfez-se da necessidade do som. Eu quero os passos tranquilos dos beijos já dados, dos abraços já consumados, das certezas já confirmadas.


Eu quero a leveza das mágoas abandonadas e a sobriedade da cumplicidade mais íntima. 


Eu quero pagar o preço das coisas na medida exata do que elas valem. E quero a liberdade de deixar o coração fora do peito quando ele estiver grande demais para caber em mim.

Se sabiam no mundo

se cruzaram duas vezes apenas. essas coisas de encontro por acaso mesmo. nada havia sido combinado ou acertado. as duas apressadas e estressadas por aí e, de repente, caminho se cruza e é aquele aperreio. tem gente que a gente não sabe porque nos desconcerta. tanta criatura passa por nós despercebida. mas tem gente que implica a gente, né? no sentido de que a existência daquela pessoa por algum motivo nos faz implicada à presença dela no mundo. que coisa curiosa, não é? pois bem, se cruzaram essas duas vezes. coisa que nem valeria se não houvesse mesmo essa implicação e, por algum motivo, esses encontros se prolongassem nelas à ponto de se saberem no mesmo mundo. e esse fato não era esquecido por nenhuma delas: reciprocamente se sabiam. 

Se encaixar

Quero um abraço. Um abraço apertado. Quero deitar ao teu lado e te olhar nos olhos em silêncio. E ficarmos assim: com o tempo passando por nós e nós dentro dele juntas. Quero passar a mão por teus cabelos devagar e olhar cada detalhe do teu rosto lentamente. E lentamente te amar. Sem pressa de nada. Sem termos que nos explicar ou nos rotular. Quero aquilo que acontece sozinho. Sem que a gente tenha que interferir no percurso. Sem encruzilhadas pensadas ou planos arquitetados. Quero você pulsando em mim. Gozando em mim. E depois rindo comigo da placa boba que vimos na rua. Quero o amor que se dá na esquina, no atravessar a rua, no sinal de trânsito. Para mim já não faz mais sentido o amor jurado, o vestido branco, os bambolês nos dedos sofridos. Quero a leveza da tua companhia, meu bem. Mas quero também o adeus se tudo deixar de fazer sentido. Quero a vida em goladas bem dadas. Quero passagens para a europa do mesmo jeito que quero parar naquela cidadezinha do interior que tem só duas ruas. Eu quero pingos grossos de chuva em nossos corpos e quero fazer amor até o sol vir bater na janela. Lembra de uma daquelas tantas tardes em que tomamos cervejas juntas? Eu quero isso: repetições sempre novas, sempre gostosas, sempre leves. Agora vem cá que eu quero um abraço. Porque te abraçar é te encaixar em mim. E me encaixar em você. E é isso o que nós duas fazemos de melhor.