terça-feira, 4 de outubro de 2022

Choro

 Há vezes em que um choro guardado nos inunda.


Não é um choro com um nome só: é um acúmulo de choros, de dores somadas.

É a existência perene de uma impotência da vida: há coisas que não temos o poder de resolver.


Há ações que não são nossas.

Há decisões que não nos pertencem.

Há desamores que não podemos transformar em amor.


A existência desse coletivo de dores, no entanto, é nossa.


É um ponto frágil em nós: no qual guardamos os resquícios daquilo que ainda está sendo curado, daquilo que ainda precisa de tempo, daquilo que ainda necessita da umidade das lágrimas.


Dor também precisa ser regada.

Visitada, trabalhada, mexida, reorganizada.


Quando a gente esquece da dor é sinal que a cura está acontecendo: que aquilo não está mais na superfície.


Mas nada impede que um dia - porque toda dor é também saudade da não-dor - essa dor emerja, sem avisar, e te faça lembrar daquilo que dói.


Isso não é fraqueza: é você entendendo os limites da vida.

É você percebendo que certos pontos finais são, na verdade, reticências.


segunda-feira, 26 de setembro de 2022

A esposa que decidiu ir embora

 Durante os muitos anos do Blog Sapatilhando, ainda sob o pseudônimo de Helena Paix, eu recebia muitos e-mails que me relatavam histórias, dores e alegrias. E outros tantos que me pediam conselhos.

Esta foi a resposta que escrevi para um desses emails.

Uma leitora do blog havia sido abandonada pela esposa, pois ela ainda tinha muita dificuldade de aceitar-se como lésbica e de enfrentar os preconceitos da família que não a aceitava.

Deixo abaixo o texto-resposta que escrevi, para que chegue em quem também necessita dele.

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Ela foi embora, o que eu faço?

Querida, sinto muito em saber disso.


Sinto mais ainda por, depois de tantos anos, sua esposa ainda colocar em dúvida quem ela é, por se deixar levar por discurssos fundamentalistas.


Sinto muito mesmo.


Mas te peço calma e te peço força.


Não somos, não existimos por causa de nossas companheiras, querida.


Elas podem ser nosso alicerce, nossa força em um momento delicado, nosso amor durante anos... mas se um dia os caminhos se separarem, o movimento natural, depois do luto vivido, da dor sentida, das lágrimas derramadas, é reencontrar-se consigo mesma.


Não cabe à mim ou à você convencer sua esposa de continuar o casamento, querida.


Essa deve ser uma escolha dela. Por mais que isso lhe machuque.


Como sua amiga, como alguém que lhe tem carinho, apenas lhe peço: tenha calma, seja forte!


A vida às vezes nos tira muito, mas em toda essa perda também nos fortalecemos. Também entramos por novos caminhos que serão capazes de também nos trazer novos sorrisos.


Imagino a sua dor. De verdade.

Sei que parece que o chão é arrancado de nossos pés. Que tudo o que acreditávamos se torna poeira. Todas as nossas certezas se vão.


Mas, ao mesmo tempo, é preciso que você se volte para si mesma. Para o valor que você tem. 


Podemos ir conversando, mas preciso que você seja forte. Preciso que você acredite que a vida não tira algo tão grande de nós sem que no futuro nos dê outras oportunidades, outras vitórias, outros sorrisos.


Acredite.


Todo amor só deve durar o tempo em que ambas(os) ainda estiverem promovendo mudanças uma no outro. O amor dura o tempo necessário para isso.


Se ela se fechou para essas transformações do amor, então, querida, é necessário que você enfrente isso com dignidade. Com auto-respeito. 


É necessário que você levante a cabeça e seja por você.


Se ela perceber que ainda lhe ama, que ainda pode ser transformada pelo amor, ela voltará.


Mas essa é uma reflexão que ela deve fazer por si mesma.


Chore suas lágrimas. Viva a sua dor. Sinta o seu luto.


Mas faça tudo isso com a certeza de quem não deve mendigar o amor e com a esperança de quem confia nos caminhos da vida.


No meio do desespero a gente esquece que ainda existem muitas horas no relógio.


Então, te peço que seja forte e que confie no tempo.


No mais, estou por aqui.

E tenho fé que dias melhores virão, viu?

Dias melhores virão. 

Você e suas pessoas

Nossas relações tanto podem ser o nosso céu, como podem ser o nosso inferno. 

Podem ser motivo de paz, como de caos. 

O mais importante de tudo, no entanto, são as organizações internas que a gente faz para chegar em um auto amor e auto respeito. Sobre isso, escrevi este texto. 

Deixo-o AQUI para que ele possa chegar a quem quer que precise dele.  

Digestão - Você e sua dor

O ano era 2013 e a minha própria homossexualidade ainda era motivo de dor. 

Pensei então em como cada uma de nós poderia trabalhar as dores que carregamos

Sobre isso, escrevi este texto. Deixo AQUI o link para quem quiser lê-lo.

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Assina a vida

Olha no meu olho, meu bem. Que te digo baixinho o teu valor pra mim. Vem cá pertinho, bem de mansinho, para que você escute o valor que você tem. É que igual à você não tem ninguém. Então fecha os teus olhos, e respira devagarzinho, sentindo o ar que sai do teu peito para o mundo. É a tua voz, meu amor, a única voz assim. É o teu olhar, bonita, o único que enxerga as coisas do teu próprio ângulo. E quando você interpreta o mundo, meu amor, a tua interpretação é única. E por isso mesmo a tua voz é gostosa de escutar. 


Então vem cá, que ouvidos para belo te querem, que olhos para o lúcido te desejam, que mãos para compartilhar te precisam. Vamos juntas, meu amor, que o mundo é grande e precisa da teimosia dos que acreditam na força que cada voz carrega em si e na beleza que cada unicidade traz. 


Não olhe a superfície, amor. Vamos juntas mergulhar na essência e no significado das coisas. Vamos juntas aprender a cartilha da vida, o beabá das belezas escondidas, o alfabeto das vozes não pronunciadas. 


É ali, bonita, nos cantos escuros de cada alma, que estão guardadas as jóias mais raras das impressões digitais. Me dá a mão! Para que mergulhemos juntas nas belezas silenciadas. Para que vasculhemos juntas as essências escondidas. Para que interpretemos juntas os processos que nos levam ao íntimo de cada ser. 


Vem, meu amor, porque há um propósito em tudo. E eu não quero jamais que você acredite naqueles que não sabem ver o belo. 


Pode ter medo, amor. Mas que você não deixe nunca que o medo congele teus pés, que a insegurança te trave o peito, que a dúvida te impeça de respirar. 


Olha nos teus próprios olhos, meu bem, e acredita no que eles veem. Pronuncia teu próprio nome. Respira teu próprio ar. Não há, amor, outra igual à ti. 


Assina a vida com a tua existência. 

Isso basta para que teus caminhos se façam.

Você dormindo

Você está aqui dormindo ao meu lado. Há pouco, eu também dormia. Meu corpo colado ao teu. Nossas respirações em sincronia. Mas acordei de repente e fiquei te olhando. Teu peito nu subindo e descendo. Teus cabelos caídos para o lado e teu pescoço longo. 
Enquando você dorme, eu olho em privilégio você aqui ao meu lado. Tua pele morena, teus longos cabelos negros, teus lábios carnudos, tua cintura fina e quadril largo. Repasso em minha mente tudo o que vivemos momentos antes de adormecermos. Sorrio sozinha. Lembro do que conversamos: de estarmos nuas de alma. De estarmos entregues. De nos amarmos em uma sincronia pontual e cúmplice. 

Tuas palavras ressoam em minha mente: eu e você que não nos precisamos, mas que nos queremos. Eu e você que sorrimos juntas sorrisos iguais porque assim nos faz sentido. Lembro de nós duas lendo juntas o trecho daquele livro, tomando vinho e discutindo os possíveis significados daquelas palavras. Lembro da gente fazendo amor com nossas percepções muito antes de virmos para a cama. 

Olho para o relógio ao lado da cama e percepbo que o dia logo, logo amanhecerá. Você vai abrir os olhos devagar, me dar um beijinho no olho como de costume, se espreguiçar com vontade esticando os braços e as pernas enquanto faz um gemidinho de preguiça: "porque não se começa o dia sem se acordar o corpo e o coração", você diz sempre como se eu já não conhecesse esta sua frase. 

Te olho mais uma vez adormecida e uma paz ressoa em nosso quarto. Repouso minha cabeça em teu ombro e coloco meu braço em volta de ti. Você se mexe um pouco e se aproxima mais de mim. Abraçadas estamos. E o restinho do sono me vem junto com o sorriso de te ter em mim.

Vem

vem, que já estou com saudades de ti! nem faz muito tempo, eu sei, mas o tempo sem ti se demora demais, ô meu deus! moça, você bagunçou meu relógio, minha cama e minha solidão! deixou em mim seu cheiro, seu gosto, seu toque, seu sorriso. e, olha, já te preciso! que coisa mais sem sentido é isso de se querer: eu nem te tinha, agora já não sei mais não te ter. vem?

Vem cá, meu bem

Vem cá, meu bem. Que eu te quero inteira. Lembra daquele dia no parque? Éramos amigas, então. Você falando divertida, rindo sorrisos tão amplos, contando despreocupada as suas histórias. Estou certa de que foi ali que eu comecei a me apaixonar por ti. Eu já nem sei direito em que ponto do caminho você tomou tanto espaço. Quando vi, você já estava em tudo. Acho que é assim mesmo que o amor funciona, não é? De repente, a gente se vê tomada por ele. O amor não pergunta nada, não quer saber, não dá ressalvas: apenas chega e se espalha todo em nós. Pois bem, meu bem. Eu cá estou lhe dizendo que venha, venha. Está tarde, eu sei, mas venha que eu lhe quero. Não apenas lhe quero: lhe preciso. Inteira e nua. Sorrindo esses teus sorrisos leves que às vezes soam como sorrisos que ainda não foram contaminados pela dor do mundo. Passarei minhas mãos de leve no teu rosto, olhando fundo nos teus olhos, sorrindo junto contigo. Palavras não serão necessárias, meu amor. Tenho olhos que sabem falar. E estou certa de que os teus olhos saberão ouvir os meus. Beijarei o teu rosto inteiro: a tua testa, as tuas pálpebras, a pontinha do teu nariz, a tua bochecha, o cantinho do teu lábio. Depois, me demorarei na tua boca, que ali quero morar. E te pronunciarei inteira em mim. A dialogar meu corpo com o teu. Venha. Que já é hora de você vir.


Te vi

Te vi na rua hoje. Você não me viu. Não me veria. Nem sabe sobre mim. Sobre o que sinto quando qualquer coisa relacionada a ti aparece.


Você não sabe como me palpita o coração. Não sabe a revolução que a tua existência causa na minha. Não sabe as vezes em que fui dormir e acordei com você pulsando em mim.


É engraçado como alguém pode revolucionar outra pessoa desta maneira. Você não fez nada demais. Além de existir e ser linda, claro.


A tua presença no mundo faz os meus dias mais felizes. E não sei, meu amor, se um dia de fato nos falaremos. Não sei se poderei te dizer olhando nos teus olhos a dimensão da tua existência em mim. 


Não sei se terei a chance de te fazer compreender como quando você fala, todas as outras vozes do mundo deixam de existir. Se poderei te falar que quando você sorri, parece que todo o brilho do sol está em ti apenas e você é o dia e as horas e o tempo.


Não vivo a minha vida centrada em ti, não pense isso. Mas é que você é, assim, esse referencial de beleza e encantamento para mim. Já nem sei quais adjetivos te atribuir porque me parece que todos os elogios que existem se encaixam à ti. 


Mas hoje você cruzou a rua e eu fiquei te olhando ir. Você caminhava ocupada, indo resolver algo. E eu te olhei até você dobrar a esquina e fiquei feliz.


Porque você não saber da minha existência e ser ainda assim tão linda só me faz te amar mais: porque você não é linda por mim ou para mim. Você é de si mesma. 


Mas, aqui do outro lado, tem um coração que pulsa teu nome às vezes. Que sonha contigo. Que sente boas coisas porque você existe.


Gratidão, meu amor, por reverberar sorrisos internos em mim sempre. Sou mais bonita por te ter em mim.

Te liguei

Te liguei uma, duas, três vezes. Mentalmente, claro. Imaginei todo o diálogo contigo. Tinha já ensaiadas as minhas falas e as tuas. A nossa conversa iniciaria insegura, como todo amor novo é. Mas teria o encantamento daquilo que se descobre. Falaríamos de política, xingaríamos a inércia do povo, discutiríamos literatura, descobriríamos amores em comum, tentaríamos advinhar as músicas preferidas uma da outra e confessaríamos aqueles gostos musicais mais duvidosos que todo mundo tem. Riríamos falando sobre as séries que já vimos, e encontraríamos o fato incomum de que ambas amam filmes antigos e lentos. E leríamos em voz alta o poema preferido de cada uma. Quando chegasse a hora de desligar o telefone, perceberíamos, assustadas, como o tempo contou as horas apressado demais. Tentaríamos nos despedir algumas vezes, sem sucesso, porque a vontade de continuar conversando seria maior do que a necessidade de desligar. E quando finalmente a hora nos cobrasse uma despedida, desligaríamos o telefone com a vontade uma da outra na boca e no peito. 

Te liguei uma, duas, três vezes. Mentalmente, claro.  

Ser livre

É que ela me deixa louca com seu sorriso explosão. Com como ela mexe em tudo o que está quieto e como a sua sapequice agita o ambiente mais calmo. Eu viveria cem anos e ainda não daria conta de tudo nela. É liberdade o nome disso. É isso: é liberdade. Ela passa livre e eu tenho raiva de qualquer coisa que a prenda. Quero ela voando alto como o sentir dela que não cessa nunca. Eu não sei que nome tem isso. É amor, mas é mais que amor. É algo que as palavras não compreendem porque palavra é coisa limitada. Palavra é sempre a tentativa de nomear algo. Mas há tanto que não é nomeável. No fim, palavras são só tentativas pequenas e falhas demais para aquilo a que se propõem. E com ela não adianta porque ela é inominável. Eu acho o mundo louco. Vivo há 36 anos neste mundo e acho o mundo tão, tão bobo. Já fui gorda, já fui magra. Já fui loira, ruiva, azul e laranja. Hoje nem sei o que sou. Já dei pra homem, já dei pra mulher, já dei para os seres bonitos que nem se preocupam com isso. Mas ela: ela me escapa. E porque ela me escapa ela me encanta. Há sempre o que se ver nela. Há sempre o que encontrar nas inconstâncias dela. E o mais encantador é que nem ela dá conta de si. Ela sofre com a sua própria liberdade. Porque há fome demais nela e um estômago profundo sempre quer mais comida. E o mundo é um refeitório amplo, mas toda alimentação tem seu preço. E eu sou apenas grata: porque posso olhar de perto a fome dela. Essa fome tão grande de vida e de gozo. E gosto de vê-la ajeitar as asas que ela carrega embaixo dos braços, disfarçando para caber entre os formais. Só eu vejo suas asas tentando escapar e ela disfarçadamente as ajeitando. Rio por dentro do seu desconcerto. Mas choro também: porque o mundo é especialista em prender as asas dos seres alados. E eu a quero livre. Mergulhando em cada voo que sua fome anunciar. Mas também a quero salva: de si e do mundo. E por isso estou por perto. Porque sei ser ninho para os seus pousos.

Selvagens

você está aqui ao meu lado, espalhada toda em mim. teu cabelo se derrama no meu ombro e se mistura ao meu. nossos cabelos pretos e longos misturados, embaraçados em uma confusão íntima e nossa. a gente troca goles de vinho em uma mesma taça, numa economia tão rica que nos transborda. paira um sonho latente em nós: que esse momento dure. se esparrame como nossos cabelos, se misture ao tempo como misturadas estamos. já não temos paciência para dúvidas. mas não temos pressa também. há no nosso tempo algo tão dolorosamente aprendido que já não queremos promessas. queremos o hoje parido em nós. o orgasmo feliz de quem se entrega. a liberdade dos que não enunciam poréns ou titubeiam escolhas. não precisamos convencer ninguém, nem a nós mesmas. não tememos o mundo e nos parimos todos os dias em coragem e amor. já não há correntes e, sem elas, o mundo é deliciosamente selvagem. como nós duas.

A gente segue caminhando

 A gente segue caminhando, amor, e é tão difícil encontrar o delicado. É tão difícil que nos tratemos todos como deveríamos. Que saibamos ver as nuances da fragilidade de cada um de nós. É tão difícil tirar a própria dor do peito. E mais difícil ainda é enxergar o que dói no peito que não é nosso. 


Vem cá, amor, que a gente tem que aprender o idioma da aproximação. E temos que conhecer nossos próprios cataclismas.


Eu não sei nada do futuro, meu bem. Mas as horas passam tão rápido! E o futuro chega sem que dê tempo da gente se preparar. 


O que eu quero? Eu quero a paz das coisas ditas. Eu quero o silêncio sereno que já desfez-se da necessidade do som. Eu quero os passos tranquilos dos beijos já dados, dos abraços já consumados, das certezas já confirmadas.


Eu quero a leveza das mágoas abandonadas e a sobriedade da cumplicidade mais íntima. 


Eu quero pagar o preço das coisas na medida exata do que elas valem. E quero a liberdade de deixar o coração fora do peito quando ele estiver grande demais para caber em mim.

Se sabiam no mundo

se cruzaram duas vezes apenas. essas coisas de encontro por acaso mesmo. nada havia sido combinado ou acertado. as duas apressadas e estressadas por aí e, de repente, caminho se cruza e é aquele aperreio. tem gente que a gente não sabe porque nos desconcerta. tanta criatura passa por nós despercebida. mas tem gente que implica a gente, né? no sentido de que a existência daquela pessoa por algum motivo nos faz implicada à presença dela no mundo. que coisa curiosa, não é? pois bem, se cruzaram essas duas vezes. coisa que nem valeria se não houvesse mesmo essa implicação e, por algum motivo, esses encontros se prolongassem nelas à ponto de se saberem no mesmo mundo. e esse fato não era esquecido por nenhuma delas: reciprocamente se sabiam. 

Se encaixar

Quero um abraço. Um abraço apertado. Quero deitar ao teu lado e te olhar nos olhos em silêncio. E ficarmos assim: com o tempo passando por nós e nós dentro dele juntas. Quero passar a mão por teus cabelos devagar e olhar cada detalhe do teu rosto lentamente. E lentamente te amar. Sem pressa de nada. Sem termos que nos explicar ou nos rotular. Quero aquilo que acontece sozinho. Sem que a gente tenha que interferir no percurso. Sem encruzilhadas pensadas ou planos arquitetados. Quero você pulsando em mim. Gozando em mim. E depois rindo comigo da placa boba que vimos na rua. Quero o amor que se dá na esquina, no atravessar a rua, no sinal de trânsito. Para mim já não faz mais sentido o amor jurado, o vestido branco, os bambolês nos dedos sofridos. Quero a leveza da tua companhia, meu bem. Mas quero também o adeus se tudo deixar de fazer sentido. Quero a vida em goladas bem dadas. Quero passagens para a europa do mesmo jeito que quero parar naquela cidadezinha do interior que tem só duas ruas. Eu quero pingos grossos de chuva em nossos corpos e quero fazer amor até o sol vir bater na janela. Lembra de uma daquelas tantas tardes em que tomamos cervejas juntas? Eu quero isso: repetições sempre novas, sempre gostosas, sempre leves. Agora vem cá que eu quero um abraço. Porque te abraçar é te encaixar em mim. E me encaixar em você. E é isso o que nós duas fazemos de melhor.

Rodou os gelos

Rodou os gelos no uísque com o dedo. Lhe pareceu agradável que naquela noite quente estivesse ali na sua varanda podendo relaxar um pouco. Mas faltava ela. Pegou o celular, despretensiosa. Como se pudesse enganar a si mesma de sua ansiedade. Olhou a última vez em que ela estivera online. Xingou a si mesma por isso. "Que ridícula! Que ridícula que sou!" - repetia dentro de si angustiada. Se levantou. Deu dois passos em direção ao parapeito da varanda olhando para a paisagem. Que grande que era aquela cidade! Quantas pessoas deveriam estar ali, como ela, sofrendo de um desamor. Imaginar que outros também doíam aliviava um pouco sua dor. Como época de virose que vem, abala tudo, a gente acha que vai morrer e não morre não. Não morre não. "Mas morre um pouquinho. Um pouquinho a gente morre." - disse à si mesma enquanto dava outro gole no uísque.

Ridículas

Eu hoje acordei pensando em ti. Cinco anos se passaram já. Mas ainda sinto o teu cheiro, o teu caos, o teu cabelo grudado em mim. A nossa confusão de pernas e mãos e línguas e bocas e suor. Às vezes preciso fechar os olhos para não te ver. Porque você pulsa aqui em mim ainda tão vívida e ainda tão forte que parece que nunca foi embora. Olho o meu cigarro sozinho no cinzeiro e me parece que as cinzas são sempre insuficientes. E lembro das gargalhadas estúpidas de nós duas em apostas ridículas e insignificantes que levavam o tempo nas costas e faziam as horas rodar em ciranda. Da cama cheia de livros dos textos que discutíamos. Dos meus óculos misturados aos teus numa cegueira tão previsível, meu deus, que era como palavra conhecida na boca. E quando o vizinho tradicional vinha de praxe reclamar do barulho, por trás do olho mágico da porta me vem a lembrança do nosso "zerinho ou um" para ver quem iria agora falar com ele. A gente se divertia, viu! A Maria Bethânia está aqui declamando o Fernando Pessoa e eles estão dizendo que toda carta de amor é ridícula. Pois não haviam duas mais ridículas que nós, baby. Esse livro da ridicularidade fomos nós que escrevemos. Em meio aos uísques no meio da noite e as pontas de cigarro no jardim e a lua vestindo a nossa nudez. Tem vezes que eu imagino a gente dentro de um filme do Bergman: bagunçadas, incompletas, fragmentadas, humanas demais para que houvesse algum sucesso em nosso amor. Mas a Bethânia está aqui nos chamando de ridículas e eu concordo com ela: ridículas. Tão ridículas que é ainda o teu absurdo que eu carrego em mim.

Recorda, moça

recorda, moça, que é pelo amor que se anda

há em ti esse desagrado

essa mania de incompreensão

como se o mundo não te alcançasse

como se a vida se deslocasse sempre de ti

como se as pessoas, nenhuma delas, te conseguissem alcançar

e fica tu, no meio de toda essa incongruência,

tonta e repentindo para si que tudo bem, que mais uma vez tudo bem


pára um pouco, meu bem

pára de rodopiar apenas um pouco


há um som dentro de ti que necessita ser escutado

há uma autocompreensão que precisa ser alcançada


por que tanta resistência, meu bem?

não creia que ninguém pode te alcançar


mas olha para o lado certo

escolhe o afeto e a paciência


se destrava, meu bem

abre mão dessas tantas cercas e arames farpados ao teu redor


o amor é molinho

bem molinho


o amor anda dentro de um caramujo.


repara.

e se repara.


abre mão da tua ilha 

para que o mole possa te alcançar.

Recebe meu abraço então

 Oi, meu amor, tudo bem?


Recebi sua carta. Li com cuidado as suas angústias e dores. Que confusão, hein? Haha. Eu queria mesmo era ir aí te dar um abraço. Mas não dá, né? Essas coisas bestas de dinheiro e tempo mesmo. Você sabe bem.


Escuta, recebe o meu abraço assim? De longe mesmo? Se sente abraçada agora então?


Eu quero te falar aquilo tudo que já falamos por telefone tantas vezes. Que vai ficar tudo bem, cara. 

As coisas vão passar. Essa angústia já já se dissipa e se transforma em outra angústia nova para eu chegar em ti e te dizer com a cara mais lavada de novo: que confusão, hein? 


Sei lá. Tem coisas na vida que a gente morre de querer explicar e não consegue.


No mínimo transforma em meme ou piada e faz uma tirada engraçada que é para não desperdiçar a ironia.


Mas explicar mesmo, não dá não.


Como é que eu posso explicar que alguém bonitinho que nem você sofra, meu deus?

Não. Nem cabe.


Eu acompanho há tanto tempo essas querelas todas.

O teu lutar. O teu sentir. O teu tentar.

Vixe.


Que a vontade que dá é de sentar a voadora em tudo o que te dói e te machuca.

Puxar um Hadouken da gaveta e sair exterminando essa bostas todas até que talvez só sobrasse a gente no mundo.

Porque a gente se tolera bem e não se faz mal. 


Sei lá.

Que a vida é coisa besta, né, cara?

Que a gente sente as coisas e às vezes eu acho que as coisas não sentem a gente.

E que tem coisas que a gente busca, busca muito a moral mas nem acha.

E que vem esse papo interno mesmo de que tudo é processo e crescimento, mas basta, né?

Tem dias que a gente só quer engatinhar mesmo e babar o nosso caminho até o peito mais próximo. Haha.


Então, te amo, viu?

Isso é ponto um e eu deveria ter começado o texto assim.

Mas tá aqui pelo meio porque é no meio de tudo mesmo que eu te amo.

Com toda essa putaria que é a vida. Com todo essa verborragia de eventos que por deus ou por lúcifer a gente há de sobreviver.

E melhores e mais gostosas, viu? Que eu nem sei como é que tu fica mais gostosa na vida, mas tu há de achar um jeito. Disso tenho certeza.


Mas, ó: chore.

Que tem que chorar mesmo.

Que choro limpa, cara. Faz faxina. Esvazia o que precisa transbordar.


E te digo isso tudo mas sei que tu também se diz.

Todo dia. Eu sei que teimosia não te falta não.

Que isso tudo aí é fichinha diante da tua vontade de viver e amar.

Eu sei.


Mas é que o mundo é bobo às vezes mesmo.

Não ligue não.

E descanse nos dias de tanto cansaço.

Que o tempo passa, amor.

E as coisas saem de foco.


Meu filho no outro dia veio dizer que tinha um método.

Aí depois perguntou com a cara mais lavada: o que é método, mãe?


Aí eu ri e disse que método é um jeito de fazer alguma coisa.

Aí ele disse: ah, então eu pensei certo.


Então é isso: a gente às vezes só tem mesmo que achar um método de levar o dia e a semana e o mês.

Que aí de repente passou tudo e é que nem band-aid de calcanhar: começa tão dolorido que o calcanhar parece ser o corpo inteiro. Depois a gente caminhando esquece até que calcanhar existe porque a dor do machucado já passou.


Sacode aí essa purpurina toda, meu bem.

Que tu pode não acreditar, tem dias, mas não te falta beleza não.


E a vida dá certo sim.

No meio do furacão é difícil de ver, mas a ventania passa e depois é o tédio da boa calma.

A normalidade das coisas repetidas.

A intimidade rotineira daquilo que ficou porque é bom.


Recebeu meu abraço, já?

Pois receba, ora. Que tô aqui te agarrando faz tempo que é só isso que faz sentido no mundo: que a gente se agarre e se sorria e se acredite. E se teime tanto e a tal ponto de virar um ponto emburrado no Universo: fortes e resilientes o suficiente para colocá-lo logo para funcionar.


Nem te digo, porque tu já sabe. Mas, mentira, te digo sim que é bom que se diga: vai dar tudo certo!


E meus braços estão aí ao redor de ti sempre.

Sorriu já? Pois sorria que eu morri aqui de fazer graça só pra você sorrir. 

Raquel e Dani

Raquel não gostava muito de sair, mas a Dani adorava, então ela fazia um esforcinho e, muitas vezes, acabava gostando também. Tinha outras que às vezes dava uma impaciênciazinha, é verdade, mas a sua moça ficava tão feliz e radiante que ela achava era graça de tanta energia. Dani não gostava tanto de filmes cults e coisa e tal. Esses bagulhos intelectualóides, como ela chamava. Ficava com um tédio louco. Chegava a bocejar, meio constrangida por isso, é verdade. Mas os olhos da Raquel brilhavam tanto com esses bagulhinhos poéticos e lentos que Dani sorria com o canto da boca achando a sua moça a criatura mais linda e inteligente do mundo! Ela dava de ombros e dizia que não entendi nada do filme e na real passava boa parte dele era mesmo assistindo com o canto do olho as reações da Raquel. Ali, nas suas diferenças, elas se encontravam de novo e de novo. Apaixonadas por entrar no mundo da outra, por assistir do lugar mais privilegiado possível o que a outra tinha a lhe mostrar. E se encantavam de novo e de novo. Com o sushi que Dani provou fazendo careta, mas que no fim ficou viciada. Com a balada que a Raquel reprovava com virada de olhos e que depois super se divertiu. Com o apê que cada vez mais foi deixando de ser sério e cinza e foi ganhando as plantinhas que a Dani trazia a cada final de semana. O amor, no dicionário delas, era isso: essa coisa compartilhada de quem se aproxima porque quer saber da outra, quer compreender o mundo, o olhar, o sorriso. E quando as pessoas viram para elas e dizem: pô, mas vocês são tão diferentes! Elas já sabem certinho a resposta que dão: a gente se encontra no meio de tudo. 

Ouvindo Chico Buarque

É que não há tempo, minha bonita. Se houvesse minhas mãos subiriam nas tuas coxas e afastariam a tua calcinha e eu te sentiria inteira. Me poria de joelhos para te lamber melhor. E percorreria a minha língua a descobrir teus poros e a molhar teus pelos e a te deixar em mim. Minha língua se faria navegante de ti e o teu cheiro me invadiria inteira. Não tenho tempo para o pornográfico, bonita. Mas isso é literatura, entende. Então aqui a gente pode se perder. O bico do teu seio na minha boca, claro. Minha língua em movimentos repetidos para que o teu mamilo se perpetue em mim. E meus dedos já molhados de ti. Minha perna já estaria entre as tuas e eu sussurraria "minha putinha" na tua orelha porque é assim que te quero: putanicamente minha. Literatura, bonita. Apenas literatura. É que a gente escreve com as mãos, entende? Meus dedos estariam pegajosos de ti e suadas, claro, porque somos urgentes e isso é frenético. Sinto teu gosto daqui.

Outro tipo de bicho

amor, estou nua. toda nua. nua de máscaras e obséquios. nua de pudores e concessões. nua de educação e polidez. nua de caminhar em ovos. aqui estou, ereta e plena de verdades. algumas são duras. outras são frágeis. mas são todas verdades de minha nudez. já não quero, meu bem, agradar ninguém. já não tenho tempo para essa educação formal dos que falam o que não querem falar, dos que ficam aonde não querem ficar, dos que não pronunciam o que sentem e não fincam suas bandeiras. sou toda urgente! e porque minhas urgências pulsam em mim latentes e cheias de saber-por-dor, já grito rouco e alto o que sei de mim. e inflo o peito de minhas certezas e rumino em meu próprio tempo as minhas dúvidas. nossa senhora do tempo vivido, rogai por mim, porque já nadei no vale de minhas próprias lágrimas e sobrevivi. e quando se sobrevive a si mesma vira-se um outro tipo de bicho. 

Os gelos boiam

Os gelos bóiam aqui no wisky, amor. Meu olhar está longe. Brinco com os dedos no gelo e há uma ponta de angústia em mim. Mas não sei dizer, não sei, por Deus não sei dizer o que nos aconteceu. As histórias são daquele jeito batido, né? Do "era uma vez" até o "felizes para sempre" ou "até que o divórcio os separe", as histórias parecem ter começo, meio e fim. Mas conosco foi aquele estrondo. Aquela coisa sem canto e sem norte do raio que nos atingiu quando nos vimos. E parece que já começamos no meio de tudo. Não houve bem dizer um começo. Foi aquela coisa assim espalhada, esfregada em nós inteiras. Uma volúpia só! Uma deliciosa volúpia. Não sei. Será que foi isso que nos tirou o fôlego? Não sei. Fecho os olhos e lembro do teu sorriso. É tão bom te ver sorrir. Te ver feliz. É como sei que de fato te amo. Falo assim no presente mesmo, que o amor amado eu acho que fica na gente. Também falo porque sei o bom que demos para uma outra. Sei do amor que amamos. É que ficou aquela coisa sem jeito que de repente fez caminho entre nós. Nem sei precisar o que aconteceu. Por Deus, não sei. Mas fiquei aqui pensando se deu tempo de eu te dizer tudo o que eu queria. Se deu para eu falar da tua beleza, da tua alegria, da teimosia do belo que você carrega em si. De como eu gosto de ti e de como sou grata por tudo. Você veio exatamente quando tinha que vir. E me rodopiou inteira, amor. Eu creio nos desmantelos da vida, sabe? Creio naquilo que se constrói e creio naquilo que se destrói. Creio que encontros vêm para nos mostrar algo. E que desencontros também ocorrem pelo mesmo motivo. Então cá estou eu com o olhar longe, mas é na vontade que você saiba o bem que me fez. E que em ti eu também tenha deixado algo de bom. 

O vento sou eu

É que o dia ainda estava escuro quando ela abriu os olhos. A brisa do ventilador lhe beijava o corpo semi nu. Podia sentir na pele o vento a circular, os pelos de seus braços a dançarem delicadamente com ele. Olhou para o lado, para cima, para si. Este corpo próprio. Verbo, substantivo e adjetivo de si mesma. Tocou em seus próprios seios, em seus braços, em sua barriga, em suas coxas. Olhou atentamente para seus próprios pés. Mexeu os dedinhos em infantil alegria. A vida assombra. Sabia que outrora fora outra coisa. Não sabe o que, mas haveria de ter sido outra coisa para que esta vida lhe causasse tanto espanto. As pessoas todas se assustam como ela, será? Quando o café toca a sua língua, naqueles poucos segundos antes do gole entrar na garganta, a língua em festa pelo abraço gustativo do café. Alguns segundos antes, a narina se saboreava com o cheiro, aquele aroma que lhe anunciava o dia e lhe animava o espírito para seus enfrentamentos. Ela nem se levantara ainda, mas a memória disso já lhe enchera de ânimo. Que coisa assombrosa é viver. É tudo tão construído de pequenos fragmentos. Dos mínimos sorrisos internos aos quais só ela e seu corpo conheciam. Fechou os olhos com vontade do escuro. Demorou-se. Estava de olhos fechados mas sua mente tudo via. Repassava todo o seu quarto em pensamento, à toque de memória, e via tudo mesmo sem ver. Assombroso! - pensava feliz e infantil. Abriu os olhos e encaixou a imagem mental com o que via. A vida é mesmo o que a gente sente da vida, viu! - declarava para si numa autopercepção sempre presente. Sentou-se na cama com os pés para fora. Mexeu mais uma vez os dedos dos pés, brincando com seus movimentos. Lembrou-se da Mafalda do Quino dizendo que quando a gente põe os pés no chão, a diversão acaba. Riu-se sozinha. Se divertira tanto já com os pés no chão. Rira tanto já sabendo o limite exato das coisas. O cru do mundo nem sempre é ruim, pensava. É como massa de bolo. Às vezes a massa crua é mais gostosa que o bolo assado. É que gostava da nudez. Todos os tipos de nudez. Roupa é coisa boba e artificial. Enfeita, é bonitinha, pode ser lindamente estilosa e até comunicar, mas será sempre parte de, e não o é. Gostava do é das coisas. Aquilo que só olhando de muito perto se sabe que há. O privilégio de verdadeiramente ver. Os pés profundamente plantados no chão como quando a gente, na praia, enfia os pés na areia e sente-a envolvendo-os inteiros. Envolver-se inteira. Disso gostava. Da água do chuveiro que batia em seu corpo e limpava tudo, cada poro, cada suor, cada lágrima, cada sujeira indesejada. Mas que também deixava-se a depender de seus movimentos, de sua própria faxina, do ensaboar, do esfregar, do lavar. Nada é tão simples que possa existir sem a nossa participação, viu. - concluía e relatava para si que é do canto dela do mundo que o mundo dela se faz. É que ver é participar. Saber que existe. Criar narrativa. Jogar para dentro de si algo que antes nem se sabia ter. Riu mais uma vez. Olhou para o ventilador do teto em seu quarto a rodar incansavelmente em movimentos absolutamente iguais. Absolutamente iguais. Teve pena das coisas inanimadas. Que triste que é que o tempo lhe estrague o corpo sem em troca enfeitar-lhe a alma! - disse em voz alta, em compaixão por seus móveis. Levantou-se da cama. Desligou o ventilador. Observou-o diminuir o ritmo até parar de vez e ainda falou sapeca uma última vez antes de sair do quarto: o vento sou eu!

O oceano e um amor que não se assume

Era tarde da noite. Eu já tinha xingado o universo inteiro dentro de mim. Já tinha me convencido a morrer. Depois já tinha me convencido a viver. Já tinha me convencido a nunca mais amar. E depois tinha tido compaixão de mim mesma e tinha chegado a um consenso de pelo menos amar quem soubesse me amar também. Tínhamos eu e eu chegado finalmente a alguma paz e decidimos, pelo meu bem comum, deixar de devaneios e colocar um filme na Netflix para fechar aquela semana de desgraças e lutas internas. 


O filme já ia pelo meio e eu já tinha conseguido algumas risadas bestas, sem ter que pensar nada, olha que maravilha! Foi quando a notificação do celular chegou. A minha primeira reação foi olhar o horário no cantinho da tela do notebook. Era tarde já. Hum. Peguei o celular no criado mudo e a mensagem era dela. Dela. Depois de tantos silêncios, depois de tanto bater de ombros, depois de tanta coisa a ser dita e que nunca foi, chega na mensagem um tímido e cara de pau: "Oi, tudo bem?". 


Eu fiquei olhando para a mensagem um bom par de minutos. Que merda. O sábado estava em paz. Eu já tinha duelado comigo e chegado a um consenso temporário. A bandeira de paz já tinha sido exaustamente erguida, ainda que a guerra iminente permanecesse à espreita. Aí vem a irresponsabilidade daquela mensagem no meio da madrugada. Que merda. Olha, eu não sou uma pessoa simples, não. Não sou. Há tantas camadas em mim que eu mesma não desbravei ainda nem um décimo de mim. Sou como o oceano naquelas matérias que dizem que cerca de 90% do seu solo ainda não é conhecido. Coloca no google. Está lá dito. A galerinha conhece mais o solo lunar do que o fundo do oceano. Pois então. Aí me vem a mensagem: "Oi, tudo bem?". "Oi, tudo bem" é o cacete! Se vai me escrever, se vai aparecer depois de tanto tempo e de ter me desarrumado tanto, ao menos apareça com o mesmo chafurdo que me causou. Chegue dizendo algo como: 


"todos os dias se passam com a sua presença em mim. em nenhum momento me liberto da falta que você me faz. eu acordo te sacudindo de mim. tomo café te expulsando da mesa. vou para o banho pedindo que você, por favor, saia dali. me visto te vendo me pedir para que não se vista. vou para o trabalho ouvindo a tua voz dizendo: 'não dá para ficar em casa hoje?'. eu chego ao fim do dia e a casa tem um vazio impreenchível porque não tem você. eu vou dormir com lágrimas às vezes, porque é o único molhado que me resta desde que te perdi. e nas vezes que eu não choro é a tua falta que ainda ainda me embala até que o cansaço de não te ter mais me vença e me faça dormir."


Aí olho para o teu "oi, tudo bem?" e tudo o que eu sinto é um incômodo desconcertante e agitado. Parece que ainda não foi desta vez que você compreendeu o que sente por mim. E eu, meu bem, já não quero mais nada além de um amor assumido. 


O meu amor eu passo a mão da cintura, dou um xêro no cangote e cochicho no pé do ouvido na reunião de família. Que amor bom é amor declarado.


Mas era tarde e eu já tinha me oferecido paz. 

Então, respirei fundo e respondi "Oi. Aqui tudo bem. E contigo?"


E, claro, nunca mais ouvi de ti.

Porque não há cordialidade no mundo que consiga dar conta de um amor que não se assume ser.  

O nome dela é Raquel

O nome dela é Raquel. Raquel. Gosto de pronunciar assim, separadinho: Ra-quel. Que é para passar mais tempo dizendo. Quando ela chegou eu nem queria saber de nada, sabe? Eu estava tão absurdamente cansada! Minha deusa! Não gosto nem de lembrar! Eu estava mais estrupiada emocionalmente do que banheiro químico no fim de show. Só o caquinho mesmo. E estava ali: vivendo. Sobrevivendo, é melhor dizer a real. Porque aquilo lá nem bem era vida não. Era um acordar, encher o peito de ar, em formato de suspiro mesmo, e dizer para si: "bora lá! bora enfrentar mais um dia!". E aí, assim sem nem eu esperar ou até querer, me chega a Raquel. Chegou fazendo foi graça comigo. Dizendo que eu era uma besta mesmo quando contei para ela as coisas dos relacionamentos que tinha tido. Ela ria de um jeito doce, fazendo graça, mas sem ser cruel. E dizia passando a mão na minha testa: "mulher, tu não pode ser besta assim não!". E me dava um beijinho no canto da boca. E aí, eu nem sei, parecia casa que é nossa, sabe? Da gente saber-se nua ali e nem ligar. Da gente desabotoar o botão da calça e rir até chorar e não ver a hora passar. Eu não acho que ela é a razão da minha felicidade, não é isso. Mas é que Raquel adiciona. Raquel nunca me tirou nada desde que chegou. Tudo é divido, somado e compartilhado. Ela não me cansa. O contrário: Raquel me descansa. E a gente se encontra ali, no meio, sabe? Eu vou e ela também vai. E quando acontece da gente esquentar a cabeça, a gente se olha e vê que precisa respirar. Aí a gente respira e se acalma e se conversa. Eu acho que é porque quando aconteceu da gente se cruzar, nós duas queríamos a mesma coisa. E aí se alinhar foi muito natural, entende? No outro dia eu estava de blusa e calcinha escovando os dentes e ela, que estava deitada na cama, virou para mim e disse: "ô, criaturinha complicada do meu coração, mas tu é bonitinha, né?". E eu ri com a boca cheia de espuma. Porque o nosso amor é assim: corriqueiro como os detalhes de um dia. 

O meu dia começou com vontade de você

O meu dia começou com vontade de ti. Com o desejo da tua pele encostando na minha. Das nossas respirações tão próximas à ponto de ficar sem se saber qual é o teu ar e qual é o meu. Abri então os olhos assim: sentindo o teu vazio na cama. Uma saudade latente de ti. Acho que o amor nos prolonga: a gente não para mais aonde antes parava, a gente se continua, se estende, se estica... Aí acordo e já não basta a minha presença: há a necessidade de saber de ti. Se dormiu bem, se acordou em paz, desejar bom dia, falar da ausência que pulsa na casa, das saudades que batem no peito. Saí da cama e fiz café: e o café chamou teu nome. Estou impregnada de ti. Escuto teu riso pela sala. A fumaça do meu cigarro desenha o teu rosto. Até o cachorro corre para a porta ansioso por ti e volta cabisbaixo ao perceber que o movimento foi na porta vizinha. Escute: que eu sei que eu e você já desaprendemos a ingenuidade. Já entoamos os cantos que partem o coração e já tivemos que raspar nosso queixo do chão várias vezes. Há em nós uma teimosia latente: somos feitas de cores. Formadas de tons resilientes e irritantes. O nosso riso sabe ser o riso nervoso de quem conhece que a lágrima do hoje sabe secar. Pois bem, meu bem, acho que nos encontramos na igualdade: feitas da mesma matéria, passamos os nossos anos sem se conhecer indo beber no mesmo oásis. E cá estamos: rodopiando sobre sonhos antigos, esparramadas num amor que se espanta ao perceber-se tão conhecido. O meu dia começou com vontade de ti.

Nem sempre o amor basta

 Hoje é uma das lembranças mais doces que eu tenho. De um lado eu. Do outro, ela. A gente estava sentadas no quarto do hotel uma olhando para a outra há pelo menos duas horas. Já tínhamos chorado. Já tínhamos falado de nosso amor. Já tínhamos pensado em todos os "e se" possíveis. Mas a resposta final vinha sempre a mesma de tantos outros momentos como esse: o contexto no qual cada uma de nós estava era maior que o ainda assim tão grande amor que tínhamos. Resignamo-nos uma última vez diante de todos os fatos e pessoas de nossas vidas. Nem sempre basta o amor. Por maior e mais intenso que ele seja, às vezes simplesmente não é o tempo dele poder ser. 


Ontem nos encontramos por acaso. Aconteceu de estarmos em um mesmo evento. Fazia sete anos que não nos víamos. Eu não sei nem descrever o que senti. Ela me viu antes. Quando a vi, ela já estava olhando para mim com os olhos marejados. Caminhamos em direção uma à outra como se só as duas ali existissem. Quando chegamos frente à frente, tudo o que eu podia sentir era o pulsar do meu próprio coração: e eu inteira a pulsar com ele.  Nosso abraço foi longo. O abraço de um amor que reencontra os dois pedaços que o formam. 


Ao sairmos do abraço, palavras não foram necessárias. Não iríamos reduzir nosso amor a frases cordiais. Sabíamos que hoje as crianças estavam crescidas. Que nossos maridos cá estavam ainda. Que toda a estrutura da qual não abrimos mão ali estava. Sabíamos o que éramos uma para a outra. Sabíamos de nosso amor. Sabíamos de quantas noites as nossas lembranças nos afagaram. Sabíamos.


É que o amor às vezes acontece apenas para nos fazer conscientes do que podemos sentir.


Ao soar o início do evento soltamos as mãos e voltamos para nossas vidas. Entre nós o nosso amor permanece. E, por enquanto, isso nos basta.

Olha, moça

Mas olha, moça, que minha mão tem sede de ti. Mas parece que quando chego perto, quando ouso te escrever ou interagir, as palavras me somem! Parece que eu esqueço como se é gente perto de ti. Já não sei que língua falo, já não sei como se existe, já não sei como se comporta como pessoa. Essas máquinas que leem mente já foram inventadas? Por Deus preciso de uma delas! Se você soubesse o quanto ocupa de mim! Se entrasse em meu peito saberia que o teu nome ecoa em minhas paredes, que teu beijo já existe em meus sonhos, que os nossos lençóis já se bagunçaram por inteiro. É coisa assim: que tu é mapa, eu acho. Eu acho que preciso me achar em ti. Te percorrer inteira. Aprender teu idioma. Saber teus caminhos. Há algo em ti que me chama. Sigo cá te acumulando em mim. O plano é que um dia eu esteja tão preenchida de ti que eu vire coragem de te chamar para sair.

Meu amor, vem cá

 Meu amor, vem cá. Sei que você não está bem. Há um cansaço antigo em ti, eu sei. Você é teimosa, é resiliente. Sai buscando o belo em cada coisa com uma persistência louvável. Sei disso. Sei que há uma vida aí latente em ti. Que pulsa em desespero por se libertar. Por viver algo que ainda te falta. Eu sei, meu amor, sei que a vida não tem sido simples. E me dói saber que não estou perto de ti para te abraçar, para te fazer cafuné na cabeça e te dar beijinhos no rosto te dizendo também teimosamente que tudo vai passar. Meu tempo perto de ti já foi. Já existem outras dimensões entre nós. Mas permaneço te olhando, te amando de longe (o que é o longe senão um conceito abstrato?), te suspirando no ouvido para você sorrir, para você não desistir.


Sei que o mundo é cru demais. Agora que estou aqui do outro lado percebo tudo melhor. Somos tão pequenos diante da vida! E, ainda assim, é tão fenomenal que cada um de nós acorde todos os dias com a teimosa crença de que tudo dará certo no final. Somos de fato o belo que pulsa. Você, meu amor, é uma das mais belas. Suas intenções são sempre boas. E houve o tempo em que não havia malícia alguma em ti. Hoje você está cansada, eu sei. E teve que aprender que nem sempre o bom existe, que às vezes coisas más acontecem com quem está apenas tentando acertar. Que há sim pessoas que saem de seus caminhos para prejudicarem outras. Vi tudo. Te observei em cada desilusão, meu amor. Sofri junto à medida que teu mundo cor de rosa foi ganhando traços cinzas.


Mas é por isso que estou aqui sempre perto de ti. Para que você não esqueça. Não esqueça, meu amor. Que há sim ainda vida a ser vivida! Há sim ainda muitos sorrisos a esperar por ti, meu bem. Há sim coisas boas no dobrar da esquina. Não deixa que o teu cansaço te turve tanto a visão. Sei que está difícil encher o peito de ar com abundância, sei que você tem cumprido suas responsabilidades apenas. Sei que há algo que te escapou. Um quebrado em ti que você já não sabe como remendar. Eu sei, meu amor, que teu coração sensível pulsa em dor.


Mas aprendi sobre o tempo. Essa malha contínua que envolve a todos nós e que nos conecta em diferentes dimensões. O tempo nos movimenta, meu amor. O tempo lava feridas com a mesma teimosia que lhes compõe. Porque ele passa, e passa em nós e por nós, tudo o que dele advém também passa, meu bem.


Estou ao teu lado agora. Você está sentada nua embaixo do chuveiro chorando. É uma mania sua: chorar escondida. Chorar embaixo d'água. Como se não te fosse permitido ser afetada. A vida nos afeta, meu amor. É essa a função dela. Eu já não tenho corpo para te abraçar mas meu abraço agora é luz e energia. E me enrolo toda em ti. Até que não me precises mais, estarei aqui. Mas saiba: é breve este tempo.


Porque não sou eu quem te salvarei. É a tua teimosia. Já sei do futuro. E é a tua teimosia o caminho para a tua redenção. Por ora, chore sim, meu bem. A tua própria água te lava. Os teus próprios pés te caminham. Não precisa ter medo do amanhã. Ele virá forte e te trará lindos abraços e sorrisos. E eu já não serei mais necessária. Mas meu amor seguirá no teu sorriso. E minhas dores terão-se ido com as tuas. E estaremos nós duas sempre conectadas pelo tempo em que nossos corações pulsaram juntos. Vem cá, meu amor, que o amanhã já já chegará.

Me molha

eu acordei com vontade de ti. o teu corpo longo. as tuas coxas grossas. os teus seios grandes. o teu cabelo repicado, sempre com uma leve bagunça em si. os teus olhos cor de mel. e o sorriso tão econômico. te amar é como contemplar um lago. é sereno. quase não há movimento. o que é ali está: estável, firme, contemplativo. mas é quando uma ventania ocorre que o lago se desperta em sua volúpia. e ali a serenidade desaparece. ah! nossos lençóis bagunçados! tuas pernas entrelaçadas em mim. nossos seios a se esfregarem uns nos outros. o gosto de ti em mim. e o teu cheiro. o teu cheiro que invade tudo, cada poro meu e que me aparece no meio do dia, na hora de uma reunião, em um telefonema de trabalho. você que me invade inteira e me inunda e me molha de mim e de ti.

Foi ontem

Foi ontem, eu sei. Mas o teu cheiro ainda está aqui em mim. Você inteira ainda está aqui preenchendo a minha vontade de ti. De você na minha cama, nos meus braços, nas minhas mãos, na minha língua. Fecho os olhos e te vejo inteira. Você e eu entrelaçadas em nós. Nossos cabelos misturados e embaraçados em nosso suor. Nossos gemidos e sorrisos. Nosso tesão. Nossos olhos nos olhos encantadas e surpresas de nós mesmas. De um amor que é só nosso. De uma revolução que se dá simplesmente por juntas sermos. E cá estou eu já cheia de saudades e tesão pelo espanto que é te ter em mim.

Eu e você

 Te digo oi, te pergunto como você está, quero saber de ti. Escrevo em minha cabeça mensagens para ti, todas elas inadequadas, todas elas arquitetadas demais, artificiais demais. É que há que se ter cuidado: não quero entrar derrubando a porta, nem quero ficar tempo demais.


Queria um café à tarde, um bolo de fubá, pernas cruzadas e palavras que conversam.


Queria também te dar um cafuné, um abraço apertado, talvez até um xêro no cangote, mas aí eu preciso ir, preciso andar, já não quero nem posso ficar.


Perdôa, eu não sei sempre acessar teu coração.

Eu não sei sempre enxergar tua precisão.


É que há um coração desfeito no meu peito. Nele as coisas são feitas com o cuidado cansado de quem já mudou muito os móveis de lugar. 


Aquela poltrona antiga que nunca sabe em que canto ficar, aquela cristaleira que já não é usada e fica pesada na sala de estar, aquela cortina velha que pega tanta poeira, mas que conta tantas histórias que é difícil desapegar.


Há coisas assim nesta casa que carrego no peito: uma arrumação, uma reorganização, uma inadequação.


Pode ser que passe, pode ser que não.


Mas quando o teu coração achar que o meu coração já não se importa, te peço: abre escancarada a porta e grita o meu nome alto que é para eu escutar.


Virei de longe, cansada ou não, mas chegarei sempre.


Porque a gente carrega na boca um sorriso pela metade: e o teu sorriso é um dos que fazem o meu sorriso ficar inteiro.

Estavam longe e perto

 Estavam distantes uma da outra, mas nunca estiveram tão próximas. Tantos sonhos as uniam. Tantos desejos partilhados. Em algum ponto do tempo, sabiam que havia um futuro que seria delas. Juntinhas na mesma casa. Dormindo abraçadas todas as noites. Elas iriam rir das marmotas do dia como hoje faziam por áudios no celular, escutados em momentos escusos, quando cada uma delas podia se ver à sós. Não dividiam a mesma cidade. Não podiam se tocar sempre que gostariam. Não tinham como matar sempre as saudades que lhes apertava o peito. Às vezes batia um choro de repente em uma delas, desse amor tão grande sufocado lá dentro, pedindo para se libertar. E aí elas respiravam fundo, pediam forças aos céus e, de repente, como se a outra advinhasse a angústia, o celular vibrava a notificação. Assim, se amparam em suas dores, em suas saudades, em suas vontades. O amor que lhes unia ultrapassa tudo. O tempo que se arrastava. A distância que lhes separava. A invisibilidade que lhes ocultava. A falta de dinheiro que lhes limitava. O amor delas era maior que tudo isso. E entre uma fuga e outra das vidas que lhes prendiam, nas palavras trocadas elas se viam livres, amplas, nutridas dos sonhos mais lindos de uma vida que verdadeiramente lhes alimentava a existência. Ali, uma com a outra, elas pulsavam o próprio conceito de felicidade. 

Estavam frente a frente

 Estavam frente a frente há quase uma hora. Já tinham conversado sobre o deus e o diabo. Já tinham medido o tempo das coisas e cutucado todas as polêmicas dos céus de suas bocas e dos infernos de seus peitos. Já tinham roçado nos incômodos de serem quem são. E já haviam rodopiado os tesões desses mesmos incômodos. A vontade uma da outra lhes palpitava freneticamente. Ali, sentadas, o mundo cessara de existir. Só as duas povoavam a realidade e suas peles ardiam em desejo de se terem. De repente as palavras já não bastavam, haveria de ir-se à fonte delas: suas bocas se necessitavam. Aproximaram-se devagar, como quem aborda o Universo reconhecendo-se minúsculas diante de tanto. Quando seus lábios se encontraram, todas as palavras ditas viraram reticências. 

Era uma dessas noites quentes de verão

 Era uma dessas noites quentes de verão. O plano era simples: iriam conversar sobre as questões a serem resolvidas no trabalho. Mas quando Andrea chegou ao apartamento, Sandra sentiu o coração acelerar. Talvez pela peculiaridade de receber a amiga em sua casa, ou por estarem pela primeira vez se vendo fora do ambiente de trabalho, ou talvez porque ela realmente estava muito linda com aquela blusinha vermelha de alcinhas... fato é que Sandra não conseguia fixar o olhar na amiga sem ficar repleta de um desconcerto que sequer era seu! Ora, logo ela, sempre desenrolada e atirada para qualquer coisa. A inadequação de Sandra não passara despercebida por Andrea e ela começara a achar divertida a situação. Um “por que não?” surgiu dentro de si. Em um monólogo sem som, narrava a si mesma: “ora, se somos as duas livres e cá estamos, com o maior clima pintando entre nós!”. Resoluta, soltou: “Por que a gente não esquece essa história do trabalho e abre um vinho?”. Sandra seria o Sol, se o brilho de seus olhos pudessem neste momento se materializar em algo. Ali, beberam seus vinhos e riram suas graças e, quando a mão de Andrea tocou o rosto de Sandra, entenderam que algo novo lhes aconteceria. 

Essa tua boca me chama

 Essa tua boca, meu bem. Essa tua boca que parece que nem é boca de gente! É tanta carne e tanto molhado e tanto macio! Que me chama! Me chama. Me chama. Já nem sei como eram os outros lábios que beijei! Que poder é esse, moça, que você tem? Quem pode assim ter a ousadia de me zerar inteira? De chegar derradeira e forte, como quem não se interessa pelo antes, como quem só quer mesmo é o agora. Pois essa boca te fala inteira, ó mulher, derradeira! E tu é toda boca! Toda carne. Toda vermelho. Toda intenso. Toda potência. Toda entrelaçada em mim. Mas olha aqui com teu sorriso nesses lábios ousados: que eles são caminho e desalinho e rodopio. E é essa tua boca que fala e encanta, que beija e enlouquece, que lambe e morde! E me faz também carne e boca e sorriso. De lábios com lábios de cima a baixo. Dos pés à cabeça somos boca e fome de nós. 

Ela foi durante um bom tempo

 

Ela foi durante um bom tempo, uma espécie de doença em mim. Não conseguia esfregar da minha pele a pele dela. A voz dela sussurrava em meus ouvidos quando eu queria dormir, me atrapalhava o banho, me tirava a paz. O cheiro dela estava de tal maneira impregnado em minhas narinas que não havia, meu deus, outros cheiros no mundo. Seus olhos pareciam que olhavam o tempo todo nos meus olhos, me impedindo de ver qualquer outra coisa que não fosse ela. Estava eu tão embriagada dela, que meu corpo inteiro estava intoxicado. Ao descaso dela por mim, parecia que o torpor do tempo em que nos partilhamos – mal e desequilibradamente, diga-se de passagem e com crudez – me envolvia em uma noção fantástica de uma realidade que não condizia com a imagem que eu fazia dela. Essa mulher cuspiu em mim inteira. Lambuzou-se com meu corpo, rodopiou em meu coração com sapatilhas finas e pontiagudas, fez-se ausência e presença a seu bel prazer e vontade. E compartilhava com graça a vida com outras pessoas enquanto recusava-se a sequer reconhecer a minha existência no mundo. Por ela, aprendi outra espécie de dor: a dor de se sentir usada, de compreender que há vezes em que não reconhecemos o mal que pulsa diante de nós. Mas mesmo sendo ela doença em mim, eu sempre me agarrei a esperança da cura: nunca sucumbi à ausência que ela me impunha. Nunca rastejei no silêncio com o qual ela me castigava. Apenas cuidei de mim e me ocupei. Deixei que o tempo me fosse companheiro. Por muitas vezes quis bradar justiça. Lhe xingar todos os nomes. Lhe atacar todos os verbos. Lhe impugnar a dor de um espelho. Mas não o fiz. Não quis devolver o feio que ela deixou em mim. Sei limpar a sujeira de mim com amor e zelo. Ao fim, ela tornou-se uma dessas histórias que se conta em velhice aos netos que sofrem desamores: meu bem, amor não é doença: amor é colo quentinho e abraço apertado e presença, presença, presença.

Ela e o The End

 É que foi aprendizado longo, sabe? Mas chegou. Eu entendi finalmente. Ela se foi. Mas antes dela ir pisou tanto! Fazia parecer tudo tão minha culpa sempre! Tudo parecia que eu é que não era o suficiente. Eu é que não compreendia. Eu é que não via o lado dela. Eu é que não a entendia em todas as suas questões. E aí, chegou o dia em que ela foi mesmo de vez. Foi e me trata como uma estranha! Como pode isso? Foram anos lado a lado. De um casamento só nosso. De uma relação em que dividimos tudo! E aí ela se foi. Não posso dizer que não tentamos. Eu sei que tentamos. De novo e de novo. Realmente não dava certo. Mas é que eu não sabia que eu iria me sentir assim, sabe? Que ela iria se comportar dessa maneira. Da gente nem se falar? Como assim? Como podem duas pessoas que um dia foram tudo de repente não serem nada? Pode. Pode sim. Tanto que foi assim mesmo. Mas eu entendi finalmente. Não preciso provar nada. Nem à ela, nem à mim. Não mais. Não tenho que me culpar pelo fim de uma relação que já estava por demais desgastada. Não tenho que ficar mendigando migalhas do que sobrou dessa relação. Não tenho que continuamente tentar dialogar com quem não quer diálogo. Amor - seja no formato que for, de casamento ou amizade - é coisa que tem que ser recíproca. Então é isso! Hoje ela curtiu uma coisa lá que eu tinha postado. Dei de ombros! Porque finalmente entendi: eu tinha me acostumado com pouco, mas eu quero é mais. Quero igual ao que eu tenho para dar e dou sempre. Quero amor que esteja alinhado comigo como eu mesma agora estou. É que o fim mesmo, o "the end", às vezes vem bem depois do amor ter ido embora.  

Dedilhava sobre o corpo dela

 Dedilhava os dedos de leve sobre o corpo dela. Ria de canto da boca enquanto fazia isso: caminhando com os dois dedos como se fossem pezinhos a andar sobre a barriga dela. 

Corria apressadinho para os seios, subia as tesudas montanhas a dedilhar seus caminhos e fazia uma narração engraçada, como propaganda turística, dizendo que paisagem mais linda não há como ali em cima daqueles morros.

E descia satisfeita os dedos barriga abaixo, lendo na imaginação a placa "desvio" que lhe fazia necessariamente descer pelas coxas dela.

E as duas riam faceiras e felizes com a leveza de estarem juntas finalmente.

Despensa Cheia

 Eu guardo para depois o meu amor por você. Encho a despensa do meu desejo. Entupo a geladeira de todo o excesso do que sinto. A casa será enfeitada com fartura. A mesa será toda posta. Todos os dias as prateleiras estarão cheias e os olhos brilharão com a abundância do que me palpita. 


Mas, e quando os armários já não mais segurarem todo o volume do que guardam? E quando a geladeira, abarrotada, já não der mais conta de condicionar seus excessos? E quando na mesa já não couber tanta coisa e o risco do mofo me assustar? Quem haverá de comer tudo isso?


Amor não nasceu para ser guardado, minha bonita.

Amor é comida partilhada a cada dia. É coisa que tem que ser dividida para poder nutrir a alma e alimentar o peito. É beleza digerida e dirigida e entregue. É passar a tigela e pedir mais sal se necessário. Acertar o tempero. É correr um pouquinho para que não se esfrie, é adular um pouco nos dias de fastio, é rir junto e gratas da fartura do peito.


Mas amo você.

Porque esse livro de receitas não vem nunca linear e às vezes a gente come além da fome e desabotoa a calça para caber mais. 


Que meu beijo te alcance.

Porque comida e fome não faltam em mim.


E que o tempo nos mostre quais alimentos são perecíveis ou não.

Compreenda meu bem

 Compreenda, meu bem. Eu não sei aonde você está. Então compreenda a minha angústia em dias de solidão. Compreenda as noites em que o sono me foge, em que busco no escuro o vulto de ti. Compreenda o meu olhar longínquo quando ao ver duas mãos dadas no metrô eu penso em ti sem nem saber teu paradeiro. Eu sigo a vida, não se preocupe. Sigo e sou forte. E sorrio muitas vezes. Algumas por teimosia, é verdade. É que existe um vazio em mim que é teu. Teu apenas. Sem que eu saiba o teu nome, sem que eu conheça de onde virás, ainda assim, há algo em mim que é de teu encaixe. No outro dia li um texto em que dizia que o amor pulsa em nós em uma frequência enérgica que só pode ser sentida por outra pessoa que deseja o mesmo. Descobri então que eu te pulso. Eu te pulso. Te pulso inteira em mim. E sei também que tu me pulsas. Que nos pulsamos. Algo forte em mim me comunica que a única coisa que nos separa é o tempo. Parece grave eu falar isso, eu sei. A frase é grave: "a única coisa que nos separa é o tempo!". Mas é o que sinto, meu bem. Desconhecida você é para mim apenas esteticamente. Porque a tua essência, esta está toda inscrita em mim. Como algo de que sou parte. Como o que, porque amo, em mim espalhado está. 

Entorpecida

 

Não tinha idade para aquilo! Como poderia? Vivera já uma vida inteira! Tinha 53 anos e agora isso? Mas não estava enganada! Não estava! Bastava que o nome dela fosse mencionado e todo o seu corpo tremia de um susto delicioso. Sentia um prazer inigualável de estar no mesmo espaço que ela. Quando sentia que ela lhe olhava - e ela lhe olhava! tinha certeza! - parecia que lhe subia uma febre, uma febre tão gostosa e insuportável que morreria ali mesmo, morreria ali mesmo como a literatura romântica dizia que as pessoas morriam, naquele drama que até então lhe parecia irreal e exagerado. Mas aqui estava ela: se sentindo velha e boba, mas completamente extasiada e entorpecida desse amor inusitado. Como seria isso, meu deus? Como poderia dizer a alguém que amava outra mulher? E ainda a esta altura da vida! Mais do que isso: que não conseguia sequer respirar sem pensar nela? Como seria isso? Ela que nunca havia transado com outra fêmea! E não se importava! O mais absurdo era que não se importava! Sentia seu corpo quente de desejo por ela. Ela estando a 6 metros, do outro lado da livraria em que trabalhava, parecia-lhe que estava ali, ao seu lado, parecia que suas almas já dançavam coladinhas uma na outra esperando ansiosamente que seus corpos também assim o fizessem.

Aquilo que bate no peito

 

Aquilo que bate no peito

 

Caminhava e pensava a respeito de tudo. O trabalho era perto de casa e não havia a necessidade de ir de moto. Gostava das suas caminhadas diárias de ida e de volta. Enquanto caminhava, organizava sua mente e seus pensamentos.

 

Tinha o angustiante pressentimento de que algo muito sério estava acontecendo em seu país. Um homofóbico filho da puta como Presidente da Comissão dos Direitos Humanos e das Minorias? Como assim? Que minorias ele representaria? Os que odeiam são sempre maioria! Tudo absurdo e surreal demais. Até para o Brasil.

 

Morava no interior de São Paulo e embora já tivesse assinado todos os abaixo-assinados possíveis na internet, sentia que não havia muito o que poderia fazer a não ser revoltar-se. Perguntava a si mesma: quantos estariam se revoltando apenas pela internet? Sem nunca levar essa revolta às ruas de fato? Mas, angustiada, concluía: mas quantos deveriam se sentir tão impotentes como ela em relação a tudo isso? Estava tão acostumada a ser vista como uma aberração, um pecado, uma anormalidade...

 

Fazia pouco mais de um ano que não tinha notícias dos seus pais ou irmãos. Eram uma família normal, classe média, mais de um carro em casa, almoço aos domingos, culto aos finais de semana. Sua família era do Rio de Janeiro. Tinha ido para o interior paulista para fazer a faculdade de Ciências Sociais, mas não só por isso: tinha ido para viver, para ser ela mesma, para se distanciar de todo o preconceito que sua família pronunciava antes mesmo de saber que ela era lésbica.

 

Tinha dado certo. Ali conhecera seu grande amor: uma menina linda, morena, de graciosos cachinhos na cabeça e grandes ideais no peito. E esse amor parecia ser tão antigo quanto o nome dela: Bárbara.

 

 O relacionamento delas parecia um sonho, mas não era. Era a mais pura e linda realidade.

 

Os pais de Bárbara não sabiam que ela era lésbica. Não ser assumida a entristecia, mas ela ainda dependia dos pais e não acreditava que era a hora de enfrentá-los. Eliza respeitava essa decisão. Ela pagava todos os dias da sua vida o preço de ter uma família que não a aceitava, que preferia nunca mais saber dela a ter uma lésbica na família.

 

Racionalmente, queria mesmo distância deles. Antes de se distanciarem de vez, tantos absurdos foram ditos a ela! Tanta brutalidade lhe foi feita, que era melhor estar longe. Mas que terreno contraditório é o coração! Por dentro, quase como se fosse um segredo imoral, ela ainda desejava ser aceita, ainda os queria de volta na vida dela, ainda queria ser abraçada e acolhida na casa dos seus pais.

 

Notou que uma lágrima teimosa se formava em seu olho. Disfarçou e passou as costas da mão no rosto como quem enxuga o suor. Ainda estava cedo. Parou no banco da praça para se recompor antes de chegar ao trabalho.

 

Lembrou novamente da situação política do país. Do tal do Pastor Feliciano que bradava aos quatro ventos que homossexuais são pecadores, aliciados do demônio, escória da humanidade, que não são normais. Pensava na sua família. Seu coração ficava apertado ao imaginar que eles concordariam com um ser humano tão horrendo como o tal Pastor. “- Ridículo!” – disse em voz alta, tomando um susto consigo mesma e olhando rápido para os lados para ver se tinha alguém por perto. Não tinha.

Todos passavam absortos em seus próprios caminhos. Lembrou de uma frase de Carlos Drummond de Andrade: “Respeite a dor que os passantes levam consigo”. De fato, quem sabe da história de ninguém? Das dores que todos carregam em si? Somos todos feitos de tantas dores! As dores dos sonhos que nunca se realizaram, dos amores que nunca foram, das amarguras que acumulamos, das saudades que colecionamos, dos entendimentos que não tivemos...

 

Outra lágrima. Em breve teria que chegar ao trabalho. “Eliza, por favor! Força! Seja forte!” – pensava consigo mesma. Mas ao mesmo tempo tinha consciência de que enquanto discursos de ódio pudessem ser livremente proferidos por líderes religiosos, por políticos e por seus seguidores, enquanto fosse permitido atacar seres humanos simplesmente por uma característica deles, comportamentos como o da sua família também seriam aceitos.

 

Outro dia ouvira uma frase no trabalho: “Quer saber como é uma pessoa? Basta saber para o que ela ora. O que quer que ela peça em oração é o que ela leva no coração.

 

Pois bem, Eliza rezava pelo dia em que difamar uma pessoa fosse motivo de vergonha. Em que pais que rejeitam seus filhos por eles não caberem nas expectativas que tinham, fosse algo que toda a sociedade reprovasse em peso. Que quando pais expulsassem de casa um filho só por ele ser gay, que quando eles andassem na rua as pessoas apontassem e cochichassem enquanto reprovam com a cabeça: “- Olha, são aqueles ali! Acredita que eles deram as costas ao próprio filho? Que seres humanos horríveis!”.

 

Mas a realidade ainda não era assim. Quando seus pais lhe deram o ultimato: “- Preferimos ter uma filha puta do que lésbica! Se for continuar nessa vida, não nos procure mais!” o que ouviu da sua única tia foi: “- Você queria o que? É muito difícil para eles aceitar isso! Se coloque no lugar deles!

 

Mas ela não podia se colocar no lugar deles! Não podia porque jamais trataria um filho como eles a haviam tratado! Jamais exigiria que um filho fosse algo que não é! E com certeza nunca se distanciaria de alguém que ama porque não concordava com UM aspecto daquela pessoa! Não, tinha consciência de que isso tudo era absurdo. O comportamento dos seus pais era absurdo, o mundo era cheio de intolerâncias absurdas!

 

Estava assim, mergulhada em pensamentos, quando ouviu seu nome: “Eliza?

 

Era uma colega da clínica em que trabalhava. Sim, era formada em Ciências Sociais, mas trabalhava como atendente em uma clínica. Precisava pagar o aluguel, as contas, o pão nosso de todo dia. Isso não a incomodava. Antes ser livre, ser dona de si, do que ter ainda todos os ideais que um dia teve e estar presa aos desejos daqueles que pagam suas contas. Isso não. Já se libertara disso.

 

Foi perguntada sobre o que estava fazendo ali e respondeu desinteressadamente: “- Ah, só pensando na vida mesmo...”. Ao que sua colega respondeu sorrindo: “- É, sexta-feira faz isso com a gente!

 

Subitamente seu rosto se iluminou em um grande sorriso! Sexta-feira era dia de ver o seu amor! Era o ritual delas: Bárbara só tinha a primeira aula da faculdade na sexta, mas os pais dela não sabiam – o que lhe dava mais tempo para ficar com a namorada. Eliza ia sempre buscá-la em sua moto e iam juntas para algum canto. Às vezes era um barzinho, às vezes voltavam para a casa de Eliza para ficarem juntas com maior liberdade.

 

Ah, sua menina era sua fonte de sorrisos! Só pensar nela já lhe dissipara todas as preocupações da sua mente! Que se danassem todos os intolerantes e homofóbicos, que fossem às favas todos aqueles que eram tão limitados que eram incapazes de reconhecer a multiplicidade e complexidade do ser humano! Claro que esses que eram tão simplistas seriam incapazes de entender a vida fora do pequeno quadrado que enxergam!

 

Sortudas eram elas: que eram capazes de reconhecer e respeitar todas as formas de amor. E se o preço que tinham a pagar por isso era a intolerância dos limitados, que fosse. Todos aqueles que enxergam além sofrem algum tipo de perseguição.

 

Eliza repousara então seus pensamentos e seguiu com a colega para a jornada de trabalho.

 

Ao fim do dia, fez sua caminhada de volta para casa feliz: logo mais estaria com sua amada!

 

Em casa, depois de tomar um longo banho e lavar de si todas as lágrimas daquela manhã, vestiu-se, pegou sua moto e foi até a faculdade se encontrar com Bárbara.

 

Todas as sexta-feiras tinha a impressão de entrar em um lindo filme romântico: em meio a todas aquelas pessoas e a confusão de alunos que saem da faculdade em desespero e ansiedade pela sexta-feira, aparecia o vulto mais lindo: sua garota.

 

Ela, sempre que a avistava, parada da calçada, o capacete extra na mão, lhe sorria. Era o sorriso mais lindo do mundo. E lá vinha ela caminhando enquanto seus cachinhos pareciam também sorrir: pulando sapecas a cada passo dado.

 

Ao chegar, Bárbara dava um beijinho na bochecha de Eliza. Procuravam ser discretas. A liberdade que tinham era boa e tentavam ter paciência e esperar pelo dia em que pudessem estar juntas para sempre.

 

Bárbara subiu na moto, passou as mãos pela cintura de Eliza e seguiram com sorrisos embaixo de seus capacetes.

 

Ao entrarem na casa de Eliza deram, de verdade, seu beijo. O beijo de duas amantes, de dois seres humanos apaixonados, de duas almas que se encontraram e se reconheceram.

 

Seguiram se beijando até o quarto e lá, demoradamente, se despiram. Olhavam-se nos olhos enquanto uma tirava as peças de roupa da outra. As mãos de Eliza se demoravam, acariciando delicadamente os braços de Bárbara. Beijava sua nuca, a ponta de seu queixo, sua testa. Fazer amor para elas era assim: era de fato cheio de amor.

 

Deitaram-se nuas na cama. Olhavam-se ainda sem pressa. Seus olhos conversavam, seus corações batiam em sincronia.

 

Lá fora, o mundo seguia com seus absurdos. Felicianos, Bolsonaros, fundamentalistas e tantos pais e familiares se aproveitavam de seu poder para distorcer, machucar, julgar, condenar, expulsar, proibir.

 

Mas ali dentro daquela pequena casa de tão poucos móveis o amor reinava: lindo, puro, maior e mais forte do que qualquer preconceito.

 

 

 

Apenas se sabe

 Há coisas que não requerem explicação. Qualquer tentativa de explicá-las seria achatá-las à dimensão parca e limitada das palavras. Assim é o amor. Eu te amo. Você é toda em mim. Atravessada de ti estou de tal maneira que a tua existência traz perspectiva nova à minha existência. Sou diferente no mundo agora que sei de ti. Agora que experimentei teu olhar e teus pensamentos. Mas descrever tais sensações não é descrever meu amor por ti. Este apenas é. Não necessita explicar-se. Apenas ser. Me sou e tu és em mim. E por um milagre ou prestação de contas, não sei, também sou em ti. Nos somos. E posso estar em outro prédio, do outro lado da cidade e ainda assim nossas mãos estão dadas. Não explica-se isso. Apenas se sabe. 

Amor, te quero

 amor, te quero


te quero inteira

pra ti mesma


te quero caminhando sozinha

livre em teus sorrisos

leve em teu existir


quero que não me precises

mas que nos queiramos


inteiras ambas

sorrisos ambas

ombros ambas

tesão ambas

vontade ambas

sonhos ambas

colo ambas

desejos ambas

liberdade ambas


que sejamos nós duas

mulheres de nossas próprias vidas


e que, de mãos dadas,

nossos mundos se ampliem

livres e cheios de luz


e que sejamos paz e calmaria

mas que sejamos também volúpia

desejo quente e ardente de dois corpos que se querem


que nossas horas passem tão rápido

e que nossa conversa gire tão solta

que queiramos agarrar o tempo pra nós


que a gente olhe sorrindo uma para a outra

sabendo que esse encontro, este ponto em que as nossas vidas se cruzaram, 

foi mesmo um daqueles momentos em que a existência bate palmas

por ter conseguido juntar duas pessoas que desejavam a mesma coisa.


estar-se junto é sempre um querer voluntário

sem prazo, sem arranjos, sem imposições


que faça sentido para ambas

e que, ao fazer sentido,

simplesmente seja.


Amor não vou mentir

 Amor, não vou mentir: tuas coxas estão aqui dentro de mim. Olho o relógio e o ponteiro te aponta. Fecho os olhos e é você quem enxergo. Encho o peito e é o teu cheiro que respiro. Há a tua presença aguda a preencher a ausência que tua partida me deixou. Há essa teimosia cardíaca que não compreende que já tentamos tudo e que já não há mais tempo para nós. No abismo caótico que nos separa, há a inconstância morna da tua pele macia a me chamar. Você, bonita, cuja geografia da pele conheço tão bem. Cada marquinha, cada cicatriz, cada detalhe. Você que já gravou seus sons em mim: cada entonar de voz, cada silêncio, cada murmúrio enjoado e bravo. Te disse uma vez que não há histórias de amor que não deram certo. É que não há presente sem passado, amor. Te carrego aqui em mim. Ontem, às cinco da tarde, pude jurar que te escutei sorrir. Aquele teu sorriso sapeca que ri solto e livre aonde estiver. E eu sorri junto, amor. Não sorri triste. Sorri junto. Porque sei o que tivemos e sei o que fomos. Sei como nos amamos. E sei também o que tentamos. E sei de tudo o que deixamos uma na outra. Olho a minha mão vazia de ti e sei, meu amor, que tuas digitais em mim permanecem. Não há histórias de amor que não deram certo, meu bem. Cá está você em mim como comprovação.

Amor e lugar

 Abri a porta do quarto devagar. Você já estava dormindo quando eu cheguei. Me demorei um pouco te olhando ali da porta, quase sem ousar entrar. Não sei quanto tempo se passou ao certo, só sei que você estava linda, dormindo esticada na nossa cama, abraçada ao travesseiro que cobria um dos teus seios e deixava o outro ali, apoiado confortavelmente sobre ele. Tuas pernas longas, o lençol que se passeava em tuas coxas e a paz do teu sono preenchiam o nosso quarto. Ali, meu amor, me demorei porque olhava para um sonho que já tive e que, por alguma bênção dos céus, se materializou em você. 

.

Tirei os sapatos como quem está a entrar em solo sagrado. Não queria te acordar. A vida vem vindo dura, apesar de toda a suavidade de nós duas. Entrei no banheiro com cuidado. Tirei a roupa, lavei o rosto e as mãos. Vesti minha blusinha de dormir. Me fiz confortável para que pudesse estar de acordo com a grandeza da nossa cama. Deitei o mais devagar que pude ao teu lado e você, em meio ao sono, passou a mão em minha cintura e se encaixou em mim. Ainda com vozinha de sono me disse: "Eu já estava com saudades, meu amor".

.

Puxei tua mão te apertando mais em mim. Que o amor é essa coisa quentinha e íntima, em que a gente põe uma roupinha velha, calcinha e lava o rosto mesmo: que é para receber, fresquinha e limpa, a bênção que é ser lugar para alguém.

Amadas até a alma

 Elas caminhavam lado a lado. Sentiam o limiar de seus próprios corpos e sentiam o mais leve toque uma na outra. Ainda não se haviam dado as mãos ali na rua. Mas preparavam-se para. Na grande revolução da existência de seu amor, respirar lhes parecia ofegante. Levantavam os ombros, suas colunas eretas, suas cabeças erguidas. Seus passos duros e solenes no chão. Olharam-se nos olhos. E como quem empunha a mais forte arma contra a estupidez humana, lentamente aproximaram as mãos uma da outra e seus dedos se entrelaçaram. Duas mulheres contra o mundo. Duas mulheres e o amor que sentiam. O mundo era pequeno demais diante disso. Estavam amadas até a a alma! 


Jan 2019

Absurdada

 minha moça, vem cá

deixa eu te apertar juntinho

e dizer no cantinho 

que nem cabe mais sentir saudades


que o que sinto já nem tem nome

é assim um absurdo de ti


sigo absurdada, meu amor

Abraço e Tempo

 Já não sou, meu bem, aquela que baixava a cabeça. Já não preciso da aprovação daqueles que não entendem de mim. Já caminhei, queridos, nas feridas do meu próprio peito. Já percorri os caminhos de minhas lágrimas e já entendi meu próprio idioma. Já hastiei a bandeira de mim em toda a minha extensão. Não pensem que é por pouca coisa que meus pés escorregarão. Os teus silêncios já não me atingem. As tuas palavras já não me atravessam. As tuas agressões já resvalam do meu peito. Protegida estou de tudo o que tenciona me diminuar porque já crescida estou de mim mesma. Sou meu próprio escudo e já estudo bem minhas certezas e incertezas. Já dei a volta em mim mesma. Já me banhei de minhas próprias lágrimas e me raspei do chão várias vezes. Há hoje em mim a resiliência daquelas que convenceram a si mesmas de continuarem seguindo. Já não sou, meu bem, vestida de fatalidades. Sofrimento que hoje me alcance é coisa sabida de passar. Do tempo, já sei as horas.


A vida é besta

 Oi, tudo bem? Este diálogo acontece dentro de mim mesma, viu? Não, não vou te ligar. Não vou te escrever. Você não entenderia. É coisa demais que eu sinto. Credo. Nem eu entendo. E aí? Calor, né? Tá calor demais esses dias. E é um enfado. Um enfado de vida, meu deus! Sei nem como vou sobreviver isso de ser eu mesma! Não há férias, né? A gente se roda e se volta e se perde: e é tudo dentro de nós. Caralho. Que não há salvação não. Há que se acostumar com essa relação porque a bicha é brava demais. É intensa e não tem isso de dar um tempo para poder pensar. Não tem. É tudo aqui no fluxo e na marra. Uma hora se gostando, outra hora se achando a mais inadequada das criaturas! Como é que a gente aprende a existir, meu deus? Aprende não. Porque quando a gente acha que sabe, a vida vira um desaprendizado só e tudo que se tinha aprendido já não vale mais para o que tá rolando agora. Eita. Já nem sei. Mas por isso, sabe? Vou te ligar não. Porque nem eu me ligaria agora. Credo. É tanta confusão! Deixa eu me organizar. Deixa eu morrer e sobreviver (acho) mil vezes aqui. Que quem sabe em algum momento eu ache que esse caminho turvo me leva mesmo para algum lugar. Já pensou? Tudo bonitinho, organizadinho, cheirando a roupinha lavada e banho recém tomado? A vida é tão besta, né? A gente só quer mesmo é paz.