quarta-feira, 21 de setembro de 2022

O vento sou eu

É que o dia ainda estava escuro quando ela abriu os olhos. A brisa do ventilador lhe beijava o corpo semi nu. Podia sentir na pele o vento a circular, os pelos de seus braços a dançarem delicadamente com ele. Olhou para o lado, para cima, para si. Este corpo próprio. Verbo, substantivo e adjetivo de si mesma. Tocou em seus próprios seios, em seus braços, em sua barriga, em suas coxas. Olhou atentamente para seus próprios pés. Mexeu os dedinhos em infantil alegria. A vida assombra. Sabia que outrora fora outra coisa. Não sabe o que, mas haveria de ter sido outra coisa para que esta vida lhe causasse tanto espanto. As pessoas todas se assustam como ela, será? Quando o café toca a sua língua, naqueles poucos segundos antes do gole entrar na garganta, a língua em festa pelo abraço gustativo do café. Alguns segundos antes, a narina se saboreava com o cheiro, aquele aroma que lhe anunciava o dia e lhe animava o espírito para seus enfrentamentos. Ela nem se levantara ainda, mas a memória disso já lhe enchera de ânimo. Que coisa assombrosa é viver. É tudo tão construído de pequenos fragmentos. Dos mínimos sorrisos internos aos quais só ela e seu corpo conheciam. Fechou os olhos com vontade do escuro. Demorou-se. Estava de olhos fechados mas sua mente tudo via. Repassava todo o seu quarto em pensamento, à toque de memória, e via tudo mesmo sem ver. Assombroso! - pensava feliz e infantil. Abriu os olhos e encaixou a imagem mental com o que via. A vida é mesmo o que a gente sente da vida, viu! - declarava para si numa autopercepção sempre presente. Sentou-se na cama com os pés para fora. Mexeu mais uma vez os dedos dos pés, brincando com seus movimentos. Lembrou-se da Mafalda do Quino dizendo que quando a gente põe os pés no chão, a diversão acaba. Riu-se sozinha. Se divertira tanto já com os pés no chão. Rira tanto já sabendo o limite exato das coisas. O cru do mundo nem sempre é ruim, pensava. É como massa de bolo. Às vezes a massa crua é mais gostosa que o bolo assado. É que gostava da nudez. Todos os tipos de nudez. Roupa é coisa boba e artificial. Enfeita, é bonitinha, pode ser lindamente estilosa e até comunicar, mas será sempre parte de, e não o é. Gostava do é das coisas. Aquilo que só olhando de muito perto se sabe que há. O privilégio de verdadeiramente ver. Os pés profundamente plantados no chão como quando a gente, na praia, enfia os pés na areia e sente-a envolvendo-os inteiros. Envolver-se inteira. Disso gostava. Da água do chuveiro que batia em seu corpo e limpava tudo, cada poro, cada suor, cada lágrima, cada sujeira indesejada. Mas que também deixava-se a depender de seus movimentos, de sua própria faxina, do ensaboar, do esfregar, do lavar. Nada é tão simples que possa existir sem a nossa participação, viu. - concluía e relatava para si que é do canto dela do mundo que o mundo dela se faz. É que ver é participar. Saber que existe. Criar narrativa. Jogar para dentro de si algo que antes nem se sabia ter. Riu mais uma vez. Olhou para o ventilador do teto em seu quarto a rodar incansavelmente em movimentos absolutamente iguais. Absolutamente iguais. Teve pena das coisas inanimadas. Que triste que é que o tempo lhe estrague o corpo sem em troca enfeitar-lhe a alma! - disse em voz alta, em compaixão por seus móveis. Levantou-se da cama. Desligou o ventilador. Observou-o diminuir o ritmo até parar de vez e ainda falou sapeca uma última vez antes de sair do quarto: o vento sou eu!

Nenhum comentário:

Postar um comentário