quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Aquilo que bate no peito

 

Aquilo que bate no peito

 

Caminhava e pensava a respeito de tudo. O trabalho era perto de casa e não havia a necessidade de ir de moto. Gostava das suas caminhadas diárias de ida e de volta. Enquanto caminhava, organizava sua mente e seus pensamentos.

 

Tinha o angustiante pressentimento de que algo muito sério estava acontecendo em seu país. Um homofóbico filho da puta como Presidente da Comissão dos Direitos Humanos e das Minorias? Como assim? Que minorias ele representaria? Os que odeiam são sempre maioria! Tudo absurdo e surreal demais. Até para o Brasil.

 

Morava no interior de São Paulo e embora já tivesse assinado todos os abaixo-assinados possíveis na internet, sentia que não havia muito o que poderia fazer a não ser revoltar-se. Perguntava a si mesma: quantos estariam se revoltando apenas pela internet? Sem nunca levar essa revolta às ruas de fato? Mas, angustiada, concluía: mas quantos deveriam se sentir tão impotentes como ela em relação a tudo isso? Estava tão acostumada a ser vista como uma aberração, um pecado, uma anormalidade...

 

Fazia pouco mais de um ano que não tinha notícias dos seus pais ou irmãos. Eram uma família normal, classe média, mais de um carro em casa, almoço aos domingos, culto aos finais de semana. Sua família era do Rio de Janeiro. Tinha ido para o interior paulista para fazer a faculdade de Ciências Sociais, mas não só por isso: tinha ido para viver, para ser ela mesma, para se distanciar de todo o preconceito que sua família pronunciava antes mesmo de saber que ela era lésbica.

 

Tinha dado certo. Ali conhecera seu grande amor: uma menina linda, morena, de graciosos cachinhos na cabeça e grandes ideais no peito. E esse amor parecia ser tão antigo quanto o nome dela: Bárbara.

 

 O relacionamento delas parecia um sonho, mas não era. Era a mais pura e linda realidade.

 

Os pais de Bárbara não sabiam que ela era lésbica. Não ser assumida a entristecia, mas ela ainda dependia dos pais e não acreditava que era a hora de enfrentá-los. Eliza respeitava essa decisão. Ela pagava todos os dias da sua vida o preço de ter uma família que não a aceitava, que preferia nunca mais saber dela a ter uma lésbica na família.

 

Racionalmente, queria mesmo distância deles. Antes de se distanciarem de vez, tantos absurdos foram ditos a ela! Tanta brutalidade lhe foi feita, que era melhor estar longe. Mas que terreno contraditório é o coração! Por dentro, quase como se fosse um segredo imoral, ela ainda desejava ser aceita, ainda os queria de volta na vida dela, ainda queria ser abraçada e acolhida na casa dos seus pais.

 

Notou que uma lágrima teimosa se formava em seu olho. Disfarçou e passou as costas da mão no rosto como quem enxuga o suor. Ainda estava cedo. Parou no banco da praça para se recompor antes de chegar ao trabalho.

 

Lembrou novamente da situação política do país. Do tal do Pastor Feliciano que bradava aos quatro ventos que homossexuais são pecadores, aliciados do demônio, escória da humanidade, que não são normais. Pensava na sua família. Seu coração ficava apertado ao imaginar que eles concordariam com um ser humano tão horrendo como o tal Pastor. “- Ridículo!” – disse em voz alta, tomando um susto consigo mesma e olhando rápido para os lados para ver se tinha alguém por perto. Não tinha.

Todos passavam absortos em seus próprios caminhos. Lembrou de uma frase de Carlos Drummond de Andrade: “Respeite a dor que os passantes levam consigo”. De fato, quem sabe da história de ninguém? Das dores que todos carregam em si? Somos todos feitos de tantas dores! As dores dos sonhos que nunca se realizaram, dos amores que nunca foram, das amarguras que acumulamos, das saudades que colecionamos, dos entendimentos que não tivemos...

 

Outra lágrima. Em breve teria que chegar ao trabalho. “Eliza, por favor! Força! Seja forte!” – pensava consigo mesma. Mas ao mesmo tempo tinha consciência de que enquanto discursos de ódio pudessem ser livremente proferidos por líderes religiosos, por políticos e por seus seguidores, enquanto fosse permitido atacar seres humanos simplesmente por uma característica deles, comportamentos como o da sua família também seriam aceitos.

 

Outro dia ouvira uma frase no trabalho: “Quer saber como é uma pessoa? Basta saber para o que ela ora. O que quer que ela peça em oração é o que ela leva no coração.

 

Pois bem, Eliza rezava pelo dia em que difamar uma pessoa fosse motivo de vergonha. Em que pais que rejeitam seus filhos por eles não caberem nas expectativas que tinham, fosse algo que toda a sociedade reprovasse em peso. Que quando pais expulsassem de casa um filho só por ele ser gay, que quando eles andassem na rua as pessoas apontassem e cochichassem enquanto reprovam com a cabeça: “- Olha, são aqueles ali! Acredita que eles deram as costas ao próprio filho? Que seres humanos horríveis!”.

 

Mas a realidade ainda não era assim. Quando seus pais lhe deram o ultimato: “- Preferimos ter uma filha puta do que lésbica! Se for continuar nessa vida, não nos procure mais!” o que ouviu da sua única tia foi: “- Você queria o que? É muito difícil para eles aceitar isso! Se coloque no lugar deles!

 

Mas ela não podia se colocar no lugar deles! Não podia porque jamais trataria um filho como eles a haviam tratado! Jamais exigiria que um filho fosse algo que não é! E com certeza nunca se distanciaria de alguém que ama porque não concordava com UM aspecto daquela pessoa! Não, tinha consciência de que isso tudo era absurdo. O comportamento dos seus pais era absurdo, o mundo era cheio de intolerâncias absurdas!

 

Estava assim, mergulhada em pensamentos, quando ouviu seu nome: “Eliza?

 

Era uma colega da clínica em que trabalhava. Sim, era formada em Ciências Sociais, mas trabalhava como atendente em uma clínica. Precisava pagar o aluguel, as contas, o pão nosso de todo dia. Isso não a incomodava. Antes ser livre, ser dona de si, do que ter ainda todos os ideais que um dia teve e estar presa aos desejos daqueles que pagam suas contas. Isso não. Já se libertara disso.

 

Foi perguntada sobre o que estava fazendo ali e respondeu desinteressadamente: “- Ah, só pensando na vida mesmo...”. Ao que sua colega respondeu sorrindo: “- É, sexta-feira faz isso com a gente!

 

Subitamente seu rosto se iluminou em um grande sorriso! Sexta-feira era dia de ver o seu amor! Era o ritual delas: Bárbara só tinha a primeira aula da faculdade na sexta, mas os pais dela não sabiam – o que lhe dava mais tempo para ficar com a namorada. Eliza ia sempre buscá-la em sua moto e iam juntas para algum canto. Às vezes era um barzinho, às vezes voltavam para a casa de Eliza para ficarem juntas com maior liberdade.

 

Ah, sua menina era sua fonte de sorrisos! Só pensar nela já lhe dissipara todas as preocupações da sua mente! Que se danassem todos os intolerantes e homofóbicos, que fossem às favas todos aqueles que eram tão limitados que eram incapazes de reconhecer a multiplicidade e complexidade do ser humano! Claro que esses que eram tão simplistas seriam incapazes de entender a vida fora do pequeno quadrado que enxergam!

 

Sortudas eram elas: que eram capazes de reconhecer e respeitar todas as formas de amor. E se o preço que tinham a pagar por isso era a intolerância dos limitados, que fosse. Todos aqueles que enxergam além sofrem algum tipo de perseguição.

 

Eliza repousara então seus pensamentos e seguiu com a colega para a jornada de trabalho.

 

Ao fim do dia, fez sua caminhada de volta para casa feliz: logo mais estaria com sua amada!

 

Em casa, depois de tomar um longo banho e lavar de si todas as lágrimas daquela manhã, vestiu-se, pegou sua moto e foi até a faculdade se encontrar com Bárbara.

 

Todas as sexta-feiras tinha a impressão de entrar em um lindo filme romântico: em meio a todas aquelas pessoas e a confusão de alunos que saem da faculdade em desespero e ansiedade pela sexta-feira, aparecia o vulto mais lindo: sua garota.

 

Ela, sempre que a avistava, parada da calçada, o capacete extra na mão, lhe sorria. Era o sorriso mais lindo do mundo. E lá vinha ela caminhando enquanto seus cachinhos pareciam também sorrir: pulando sapecas a cada passo dado.

 

Ao chegar, Bárbara dava um beijinho na bochecha de Eliza. Procuravam ser discretas. A liberdade que tinham era boa e tentavam ter paciência e esperar pelo dia em que pudessem estar juntas para sempre.

 

Bárbara subiu na moto, passou as mãos pela cintura de Eliza e seguiram com sorrisos embaixo de seus capacetes.

 

Ao entrarem na casa de Eliza deram, de verdade, seu beijo. O beijo de duas amantes, de dois seres humanos apaixonados, de duas almas que se encontraram e se reconheceram.

 

Seguiram se beijando até o quarto e lá, demoradamente, se despiram. Olhavam-se nos olhos enquanto uma tirava as peças de roupa da outra. As mãos de Eliza se demoravam, acariciando delicadamente os braços de Bárbara. Beijava sua nuca, a ponta de seu queixo, sua testa. Fazer amor para elas era assim: era de fato cheio de amor.

 

Deitaram-se nuas na cama. Olhavam-se ainda sem pressa. Seus olhos conversavam, seus corações batiam em sincronia.

 

Lá fora, o mundo seguia com seus absurdos. Felicianos, Bolsonaros, fundamentalistas e tantos pais e familiares se aproveitavam de seu poder para distorcer, machucar, julgar, condenar, expulsar, proibir.

 

Mas ali dentro daquela pequena casa de tão poucos móveis o amor reinava: lindo, puro, maior e mais forte do que qualquer preconceito.

 

 

 

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